Fortaleza só tem cover? Eventos focados na música autoral cearense buscam mostrar o contrário

Três iniciativas públicas e privadas visam difundir a música produzida no Ceará

Quem anda pelos bares e restaurantes com música ao vivo em Fortaleza, independente do estilo do estabelecimento, provavelmente encontrará uma similaridade: com frequência, o repertório tocado presta homenagens a artistas de alcance nacional ou internacional, com pouco espaço para o que está sendo produzido no cenário musical do Ceará atualmente. 

A tendência surge principalmente por questões mercadológicas. Na última década, diversas casas de shows com palcos importantes da Cidade fecharam suas portas – a exemplo das que funcionavam no entorno do Dragão do Mar – e muitos músicos tiveram que investir em projetos que funcionavam em espaços com públicos mais amplos, como covers, que se tornaram preferência entre muitos contratantes.

Em entrevista ao Verso, produtores que estão à frente de eventos que contrariam essa tendência destacam que a pequena quantidade de palcos não afeta o nível da produção musical cearense – que só cresce, se diversifica e se profissionaliza a cada ano que passa. No entanto, a ausência de interesse dos poderes público e privado na contratação de projetos autorais impossibilita que esses artistas avancem, formem público e ocupem outros espaços.

Com o intuito de fortalecer a produção artística cearense, neste mês de julho, três iniciativas recentes voltadas para a música autoral realizam eventos gratuitos na Capital. Juntos, serão shows de mais de 20 artistas, de diferentes gêneros musicais, em pontos diversos de Fortaleza. Conheça cada um deles a seguir:

Encontro entre público e artistas 

Em funcionamento há pouco mais de dois anos, a Estação das Artes tem se firmado como um dos principais palcos de Fortaleza, com apresentações de artistas de diversas linguagens – especialmente da música. Com o intuito de firmar compromisso com a classe artística do Estado, desde o fim de maio, o complexo cultural conta com o programa Estação Autoral, que garante destaque para artistas cearenses na programação.

Segundo o gerente de Ação Cultural da Estação das Artes, César Teixeira, o programa foi criado porque, ainda que mais de 90% da programação do complexo seja de artistas cearenses, muitos músicos se apresentam com projetos que não são autorais. 

“A cena tem uma potência muito grande, não é de hoje. Historicamente, o estado do Ceará é muito potente na música e na questão autoral. Pensamos esse palco e esse programa justamente para tentar que público e artistas se encontrem também nesse lugar [da autoralidade]”, explica.

Até agora, foram realizadas duas edições do projeto. A estreia, nos dias 24 e 25 de maio, contou com cinco shows de artistas cearenses; a segunda edição, nos dias 13 e 14 de junho, teve duas atrações do Estado. A terceira ocorre no próximo dia 18, com as bandas Soul de Áries e o cantor Gabriel Aragão.

A gente traz muitos artistas com essa pegada do autoral e a gente vê e sente que o público responde, que o público participa e está interessado nesses trabalhos."
César Teixeira
Gerente de Ação Cultural da Estação das Artes

A ideia é que o programa seja realizado pelo menos uma vez por mês e, até o fim do ano, receba pelo menos dez shows autorais – artistas como BanzoBeat, Emiciomar, Kaya, Moon Kenzo e O Cheiro do Queijo são alguns dos nomes já confirmados, selecionados pelo Edital de Projetos Artísticos da Estação.

O gerente destaca que, além dos projetos escolhidos via edital, há shows feitos por convites e a possibilidade do envio de propostas por e-mail (estacaodasartes.programacao@institutomirante.org).

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Instagram: @estacaodasartes.ce
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Foco na circulação

Um evento independente focado na circulação de novos nomes tem sido oportunidade para dezenas de artistas cearenses mostrarem seus trabalhos. Organizado pelos produtores Airton Bruno Viana, José Augusto de Castro Neto e José Willame Pereira da Silva, o Festival Made in CE teve sua primeira edição em julho do ano passado. Neste mês, o evento realiza sua terceira edição, com apresentações de 19 bandas entre os dias 05 e 20 de julho, nos teatros dos Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCAs).

“Embora nós tenhamos gente incrível fazendo música aqui, infelizmente o Ceará, principalmente Fortaleza, é mais fácil para cover”, lamenta Airton, que também é músico e conta ter se formado produtor por necessidade. “Por isso, buscamos nos movimentar para dar o maior espaço possível para quem faz música aqui”, completa.

Feito de forma 100% voluntária – tanto por quem organiza quanto por quem se apresenta –, o projeto ganhou nova forma em 2024, com apoiadores como a Prefeitura de Fortaleza, a Rede Cuca e a Casa de Vovó Dedé, que contribuíram com estrutura, apoio logístico e a oferta de premiações para as cinco bandas que se destacarem nas apresentações. Entre os prêmios estão a gravação de músicas e shows e a oferta de uma apresentação de circulação paga pela Prefeitura.

O setor de bares e restaurantes reluta demais em dar espaço para o autoral, por uma comodidade que eu não consigo entender. Ele reluta demais em empregar e colocar bandas autorais, porque ele acha que o que o povo quer ouvir é a zona de conforto."
Airton Bruno Viana
Músico e idealizador do Festival Made in CE

Para Airton, a iniciativa conjunta deve beneficiar não só artistas que querem seguir carreira em projetos “tradicionais” de música, mas também jovens artistas que, muitas vezes, não têm acesso a equipamentos e softwares caros, mas têm produzido trabalhos autorais de forma criativa e inovadora.

“Hoje em dia, um menino com um controlador midi, um computador e um programazinho consegue fazer música como se tivesse toda uma banda junto com ele. Tem muito mais gente conseguindo fazer música. O Ceará hoje vem produzindo uma grande quantidade de artistas, que muitas vezes são desconhecidos, mas são incríveis”, pontua o produtor.

Todas as apresentações têm acesso gratuito e os próximos ocorrem nos dias 12 e 13 de julho, nos teatros dos Cucas Jangurussu e José Walter, respectivamente. A grande final do festival acontece no Anfiteatro da Beira-Mar, no dia 20. 

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Instagram: @festivalmadeince

Autoralidade multicultural

Homenagem a um dos pontos boêmios mais famosos da Capital, o Cais Bar (1985-2003), o Cais Festival nasceu da inquietação de um entusiasta da música que viveu “a era de ouro” das casas de show de Fortaleza nos anos 2000. Formado em arquitetura, João Dias começou a trabalhar como músico após a pandemia, como guitarrista da banda Pira, e percebeu que os palcos de Fortaleza estavam cada vez mais fechados para a música autoral – diferente de quando, adolescente, saía vários dias na semana para ver shows de artistas locais.

Decidiu, junto ao amigo João Souza, buscar parcerias para criar um evento que movimentasse a cena e criasse um novo espaço para artistas cearenses. A dupla levou vários "nãos" até chegar a Karol Teodoro, chef e idealizadora do restaurante Aconchego, localizado no Centro da cidade – que, a partir deste mês, se torna também palco musical.

“Comecei a rodar a cidade com meu incômodo debaixo do braço”, brinca João Dias. “O projeto nem tinha nome, mas pelo apelo comercial, que não geraria muita venda, não brilhava os olhos de ninguém. Até que o João me apresentou a Karol e ela brilhou os olhos”, conta o idealizador, que chama a parceira de “apoiadora e aceleradora” do novo palco.

Segundo a fundadora do Aconchego, o evento chega para fortalecer a faceta multicultural do espaço e se alinha à proposta de gastronomia autoral cearense do restaurante.

“Quando não damos espaço para a criatividade fluir, ser apresentada, ser sentida, estamos literalmente perdendo nossa identidade, nosso jeito de ser. A música, assim como a gastronomia, conta a história daquele povo naquele tempo. Como contaremos no futuro a nossa história de hoje? Ela precisa ser vivida”, destaca.

A primeira edição do evento ocorre na próxima quinta-feira (11), às 18h30, com show de Lorena Nunes. A entrada é livre, com contribuição voluntária para quem desejar fortalecer o projeto. Até o fim do ano, o “festival” vem em pequenas doses: terá um show mensal, até tomar formar e conseguir aumentar o número de dias e atrações – possivelmente, em 2025.

Em muitos lugares, há muitos palcos e não existe metade da força, do talento e do número de artistas autorais que tem aqui em Fortaleza."
João Dias
Músico e produtor

“A proposta é ser um festival de fato, de dois dias – um dia com música cantada, um dia com música instrumental. Esse sonho não está longe, mas não está tão próximo, e a gente precisava tirar do papel logo”, explica João Dias. “A primeira edição será com uma atração que já vale por mil atrações, porque Lorena é uma artista incrível, multifacetada”, completa.

O primeiro passo, ainda tímido, pretende ser início de uma caminhada, destaca o músico. “Além de transformar em um festival maior, eu espero que o Cais abra os olhos de outras empresas e outras casas de shows para os eventos autorais. Quero que esse projeto dê certo não para se tornar um case de sucesso, mas que o artista e o trabalho autoral voltem a circular na cidade e gerar renda para os espaços”, conclui.

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Instagram: @caisfestival