O que faz o letrista quando as palavras não cabem mais em si? Há, então, de conversar, puxar prosa demorada, reviver momentos e germinar outros. Dialogar. E de um bom papo, Evaldo Gouveia entendia bem, engrenando mais um sempre quando possível.
“Além de ser um grande compositor, ele era um grande contador de histórias. Tinha uma lucidez tremenda e eu queria passar tudo para o papel”, afirma o produtor cultural e comunicador cearense Ulysses Gaspar, autor de “O que me contou Evaldo Gouveia” (Expressão Gráfica e Editora, 2017).
O livro traz uma síntese de mais de 400 horas de conversas gravadas com o músico, nascido em Orós a 8 de agosto de 1928. Embora natural da cidade, tinha memória identificada com o município de Iguatu (CE), para onde a família do artista se mudou quando ele tinha apenas três meses de idade.
Ali, Evaldo Gouveia teceu os primeiros contatos com o mundo e a arte, tornando-se, anos depois, referência da Música Popular Brasileira da era do rádio, período cujo auge aconteceu nas décadas de 1940 e 1950 no País.
Não à toa, é difícil encarar a despedida de alguém tão essencial em nossa cultura. O cantor, compositor e violonista – autor de clássicos, como "Sentimental Demais", "Somos Iguais", "Serenata da Chuva", do samba-enredo "O Mundo Melhor de Pixinguinha", dentre outras canções que ganham espaço na memória dos ouvintes até hoje – partiu na última sexta-feira (29), deixando um farto e incontornável percurso de entrega e paixão à música e à vida.
Evaldo faleceu na noite da útima sexta-feira(29) em um hospital particular de Fortaleza, vítima de Covid-19. O corpo do artista foi sepultado, na manhã deste sábado (30), no Cemitério Jardim Metropolitano, com a presença da esposa, a cantora Liduína Lessa, seguindo todas as normas recomendadas para sepultamento nesta época de pandemia.
O músico estava com a saúde debilitada desde o fim de 2017, quando apresentou um quadro de pneumonia, em São Paulo. Na época, se internou e, no hospital, teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC). De volta para Fortaleza, Evaldo ficou em tratamento até contrair o novo coronavírus, que debilitou ainda mais seu quadro. O artista se despede deixando a mulher, e dois filhos, Marcio e Marcelo Gouveia.
Ulysses Gaspar, ao rememorar o convívio com o sentimental trovador, traz à superfície o relevo do que ele produziu: “Sem dúvida, Evaldo Gouveia foi o maior ícone da música cearense. O primeiro compositor daqui a levar a música do Ceará para o Brasil e para o mundo. Ele antecedeu o sucesso da geração de estrelas do Pessoal do Ceará, como Fagner, Belchior, Ednardo, Fausto Nilo, Amelinha, Nonato Luiz, Rodger Rogério, Téti e todos os outros. Foi o primeiro a ter essa visão. O próprio Raimundo Fagner já me disse várias vezes pessoalmente: ele foi e ainda é a maior inspiração minha na música brasileira”.
Reverências
Um coro de vozes se une para também reverenciar a trajetória de Evaldo – cuja última apresentação em show profissional aconteceu no ano de 2016, em Fortaleza, pelo projeto Duetos, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Fagner reitera o que já havia falado para Ulysses quanto à singularidade de Gouveia, afirmando que conhece o músico desde a infância.
“Ele era afilhado dos meus pais e morávamos em casas que ficavam uma em frente da outra, na Rua Floriano Peixoto, 1779, justamente na casa que nasci”, rememora.
“Sempre me chamava de Raimundinho e falava com carinho da tia Chiquinha e padrim Zé Feliz. Comecei a cantar muito cedo, aos 6 anos de idade, possivelmente influenciado por essa relação e pelo ambiente de minha casa, onde todos cantavam”, diz.
“A obra de Evaldo é extraordinária e, certamente, ‘Sentimental Demais’ ficará marcada também como um dos clássicos do meu repertório. Que Deus o leve para o melhor lugar pela sua grandeza como pessoa e artista maior. Salve Evaldo Gouveia! Salve a música brasileira!”, diz Fagner.
Fausto Nilo, outro parceiro musical de Evaldo, divide composições com ele e conta ter passado a adolescência acompanhando e admirando o trabalho do músico. “É uma perda muito grande para a música brasileira. Era uma pessoa maravilhosa, um grande amigo, acompanhei todo esse problema de saúde até esse final, agora. Tenho muito orgulho de ter tido ele como parceiro”.
Para Fabiano Piúba, Secretário da Cultura do Ceará, o legado de Evaldo perpassa gerações e estilos. “Ele representa uma afetividade musical, a minha mãe ouvia muito as canções dele. Foi importante para minha própria formação musical, ouvi-lo e reconhecê-lo dá uma sensação de pertencimento enquanto cearense. Lamento muito a sua passagem”, declara.
Por sua vez, o pesquisador da música brasileira, Nirez, ressalta o passeio pelos sambas-enredos feito por Evaldo. “Ele aceitou como desafio, ficou taxado como o músico de cantor de ‘dor de cotovelo’, então ele encarou. Fez essas incursões e achou por bem fazer um samba e foi um sucesso, brilhou em vários aspectos”.
Quem também contribuiu com olhares sobre a potência de Gouveia é o jornalista e radialista Tom Barros, um amigo que cantou várias vezes com o músico. Segundo ele, Evaldo é um gênio.
“Ele precisa ser estudado para saberem como produzir, de uma forma tão rápida, tantas canções arrancadas de um sentimento tão forte, que encantava o Brasil inteiro. Estava ouvindo ontem, as pessoas dizerem, ‘Nelson cantou Evaldo, Altemar Dutra, Maria Bethânia, Angela Maria, Dalva de Oliveira…’. Mas não foi apenas isso, não: o Brasil cantou Evaldo. Aliás, ele tem um acervo de músicas não gravadas valioso”, revela.
Trajetória
Tanto reconhecimento ao ofício de Evaldo deve-se sobretudo à qualidade do que criou. Com 1.200 composições e cerca de 800 músicas gravadas por parceiros, o estouro de seu repertório no rádio – espaço em que deixou algumas das maiores contribuições – foi impulsionado pela voz de muitos cantores, a exemplo de Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Alaíde Costa e Maysa Monjardim. Antes de emplacar carreira solo, o cearense fez parte de formações como a do lendário Trio Nagô, ao lado de Mário Alves e Epaminondas Souza.
A relação com Altemar Dutra (1940-1983), em especial, marcou o ápice da carreira de Evaldo. Ele levou Dutra às boates de Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ), e o sucesso do cantor mineiro, interpretando as composições de Gouveia, consagrou ambos ao auge.
Também firmou importante parceria com o capixaba Jair Amorim (1915-1993), com o qual dividiu trabalhos por mais de três décadas, compondo sucessos como “Tango para Teresa”, “Brigas”, “Bloco da Solidão”, “O Trovador”, “Que queres tu de mim”, “Alguém me disse” e “O Conde”. Em “O mundo melhor de Pixinguinha”, a dupla contou com a participação de Euzébio do Nascimento.
A consagração no Rio de Janeiro teve base, no fim da década de 1940, na reputação do cearense pelo circuito de bares de Fortaleza e premiações em programas de calouros da extinta Ceará Rádio Clube. Foi depois dessa fase que o artista ajudou a fundar o Trio Nagô. Com o grupo, Evaldo trilhou um amplo circuito de shows. Na primeira metade da década de 1950, nasceram composições como "Somos Iguais", "Serenata da Chuva" e "Sentimental Demais".
Tributos
Em 1982, Evaldo Gouveia foi agraciado como Troféu Sereia de Ouro, um reconhecimento concedido, desde 1971, pelo Sistema Verdes Mares a personalidades que se destacaram e deram sua contribuição ao desenvolvimento do Ceará – em seus diferentes setores de atuação.
Uma série de tributos marcou as comemorações pelos 90 anos de vida do compositor, completados em agosto de 2018. Em fevereiro do ano passado, a homenagem do Carnaval da Saudade do Clube Náutico Atlético Cearense sinalizou sobre a contribuição da obra do cearense para os festejos carnavalescos. Também "O Mundo Melhor de Pixinguinha", em parceria com Jair Amorim, virou samba-enredo da Portela em 1974, e Evaldo ainda criou as chamadas "marchas-rancho", a exemplo de "Bloco da Solidão", celebrada nos bailes durante os anos de 1970.
Recebeu honraria também na programação oficial do Carnaval de Fortaleza, em 2011. Como o parceiro Fausto Nilo, homenageado no ano anterior, Evaldo foi lembrado e teve obra revisitada, na ocasião, por 20 intérpretes nacionais e locais, com o lançamento do CD "Lá vai meu bloco, vai". Produzido pelo percussionista cearense Pantico Rocha, o disco reuniu nomes como Elba Ramalho, Jane Duboc, Zé Renato e Dominguinhos, pelo time nacional.
Dentre os locais, o próprio Evaldo participou (com "Canto Cearense" e "Esquinas do Brasil"), além de sua companheira, Liduína Lessa, Kátia Freitas, Marcus Caffé, Waldonys e a bateria do bloco Unidos da Cachorra.
Memórias
O conterrâneo Marcos Lessa, preparou, em setembro de 2018, um show dedicado à interpretação do cancioneiro de Evaldo Gouveia. Além de celebrar a amizade e a parceria dos dois artistas – concretizada por meio de canções feito “Entre o mar e o sertão” – o tributo evidenciou como o legado de Evaldo, durante mais de sete décadas de trajetória artística, foi periodicamente “reinventado” pelas novas gerações.
Evaldo conheceu Marcos pela participação no programa The Voice Brasil em 2013. “Quando entramos em contato pela primeira vez parecia que ele me conhecia desde menino. O sobrenome da esposa dele é Lessa e aí ficou tudo muito familiar”, recorda com carinho. Sempre que ia ao Rio de Janeiro, Marcos dedicava um dia para visitá-lo.
“Eram momentos muito bacanas, um barato e ele me pegou como um afilhado musical, me deu muita música pra cantar. Passávamos horas conversando sobre a história da música brasileira. Eu acho que o que fez Evaldo gostar de mim foi porque eu sou uma linha de cantores que não tem mais, dos barítonos”, revela sobre a convivência com a grande referência artística.
No show de 2018, Evaldo marcou presença, mas não pôde participar cantando por conta da saúde. “Fizemos em um formato menor, com a plateia no palco e foi uma noite muito memorável. Deixamos o microfone perto dele pra caso ele quisesse falar e, em uma das músicas, se levantou e cantou do jeito que ele pôde. Foi uma honra, muito especial”.
Na fala de Marcos, ficam a admiração e a saudade. “Como amigo, ver Evaldo em paz é o que me consola. O que eu sinto muito nesse momento é não poder me despedir. Se fosse em tempos normais, seria uma grande festa e não poder prestar essa última homenagem é doloroso, mas quando isso passar vamos cantar pra ele ouvir”, celebra.