Estreias em plataformas de streaming atiçam efeito 'FoMO', caracterizado pelo medo de ficar de fora

Excesso de frequência e exibição nas redes sociais multiplicam reflexões sobre o comportamento dos indivíduos na contemporaneidade

Eis a cena: o despertador alarma e você acorda. Mal abre os olhos, toma o celular nas mãos e vai checar as redes sociais. Passa talvez 20 minutos ou meia hora descendo o feed, conferindo as últimas postagens. Ao levantar, passos em direção ao banheiro, o aparelho continua nas mãos, você conferindo ou revendo os posts. E assim o dia acontece, nessa espiral de curtidas, comentários e publicações. Não dá para desgrudar o olhar. É muita coisa acontecendo.

A mesma dinâmica se estende para os fartos catálogos disponíveis no streaming, em plataformas que se multiplicam e ofertam cada vez mais conteúdos. No dia 29 de junho, por exemplo, estreia no Brasl a HBO Max. Na lista de programas, há de “Friends” a “Game of Thrones”, sendo um dos maiores atrativos do serviço o fato de que ele receberá lançamentos dos cinemas na mesma data de estreia.

Diante do excesso dessas possibilidades de consumo, e de frequência e exibição nas redes sociais, não é à toa que um assunto como a Síndrome de FoMO ganhe um fôlego cada vez maior na contemporaneidade. Caracterizada como o “medo de ficar de fora”, a expressão vem do inglês “Fear of Missing Out”, criado em 1996 pelo americano Dan Herman. 

O termo descreve exatamente o sentimento de angústia que acomete muitas pessoas por acharem estar perdendo algum acontecimento muito importante. Resultado: a fim de driblar esse medo, emerge uma necessidade constante de saber o que os outros estão fazendo. Nesse movimento, também é desenvolvida uma espécie de incômodo pelo fato de não se estar naquela situação apresentada, digamos, como melhor ou privilegiada.

A questão se aplica também à suposta emergência de acompanhar todos os lançamentos de produtos como filmes, séries e álbuns musicais, além das novidades em outros diversos fronts, como as últimas postagens de uma celebridade ou influenciador digital favorito. Uma forma descontrolada de não ficar de fora do que está pautando os assuntos “do momento”.

Conforme o psicólogo clínico e mestrando em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Lucas Santos, a síndrome em questão diz respeito a um comportamento de dependência, mediado pela internet, de estar atualizado de todas as questões possíveis. A relação com o meio virtual acontece de forma exagerada a tal ponto de conceber o celular como uma extensão do próprio corpo. 

“Penso que esse fenômeno pode ser encontrado em todas as faixas etárias, mas toma maior forma naquelas em que a relação com o meio virtual é dada como natural e com aqueles que priorizam a exposição de si nas relações”, situa.
Lucas Santos
Psicólogo e mestrando em Educação pela Universidade Federal do Ceará

Avaliar os passos

Segundo ele, ao considerar o presente cenário pandêmico – um instante em que evitamos sair de casa e no qual a internet se consolidou definitivamente como um meio não apenas de atualização dos acontecimentos, mas, efetivamente, de possibilidade de contato com os outros – é positivo que, diante das restrições, possamos estar mais conectados.

Contudo, deve ser avaliado como as informações chegam até nós e de que maneira elas afetam o nosso cotidiano. “As condições impostas pela pandemia, a meu ver, possibilitaram um maior enfoque a essa questão que já afetava muitas pessoas”, examina Lucas.

Questionado sobre o que diferencia a Síndrome de FoMO da ansiedade, por exemplo, o psicólogo explica que a ansiedade, em si mesma, é uma reação normal a todo sujeito. A partir do momento em que ela ocorre de uma forma mais intensa e persistente, é possível considerá-la um transtorno

“A ansiedade traz no cerne o medo relacionado a algum elemento que adoece o sujeito. Na síndrome de FoMO, esse medo está presente, assim como o desejo de estar a par de tudo. A médio e a longo prazo, pode haver um distanciamento cada vez maior da vivência do mundo real”.

O profissional, assim, aponta que não é possível vilanizar a internet, uma vez ser uma ferramenta que nos proporciona maior conectividade, conhecimento e facilidade para as atividades diárias. “Por si mesma, ela é apenas um meio. O importante, de fato, é avaliarmos como nos relacionamos com ela”, dimensiona.

“A autoavaliação é o primeiro passo, ou seja, fazer um levantamento de como eu estou me colocando nas relações interpessoais, de como estou vivendo, qual o grau de importância que essas situações estão tendo em minha vida e, com isso, indagar-me, por mim mesmo, se  consigo dar conta da situação sozinho ou se é necessário buscar ajuda profissional de um psicólogo ou psiquiatra”, completa.
Lucas Santos
Psicólogo e mestrando em Educação pela Universidade Federal do Ceará

De forma geral, uma alternativa para que se consiga lidar de maneira mais saudável com esse comportamento descontrolado de acesso às redes e ao consumo de novidades, é fazer uma coisa de cada vez, ou seja, concentrar-se em apenas uma atividade. Ao se alimentar, ler, conversar ou deitar, por exemplo, deve-se fazer somente isso e aproveitar o momento. 

“Deixar o celular fora do campo de visão também pode ser uma boa alternativa”, sugere Lucas Santos. “É importante destacar que a mudança é processual e que faz parte desse processo o sujeito ora estar mais tranquilo, ora mais ansioso com essa questão”.

Seres sociais

Jornalista e professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, Ricardo Jorge considera que, de antemão, somos seres sociais, ou seja, temos a necessidade de conviver com outras pessoas. Logo, nossa identidade como sujeitos é construída e constituída a partir do achamos do que os outros acham de nós – sejam familiares, amigos ou colegas de trabalho.

“Tudo o que fazemos ao longo do dia está sempre relacionado às outras pessoas, numa associação com elas. Assim, tentamos ter algum tipo de retorno dessas pessoas para saber se o que estamos fazendo de algum modo entra em conformidade com o que se pensa em relação àquelas situações”, descreve o estudioso.
Ricardo Jorge
Jornalista e professor da Universidade Federal do Ceará

Para tomar como ponto de referência o cenário estabelecido com a pandemia de Covid-19, Ricardo Jorge utiliza como exemplo a jornada de trabalho em home-office. De acordo com ele, ao mesmo tempo que esse formato otimizou fatores como a economia de combustível e de tempo de deslocamento, por outro lado abriu espaço para que os vínculos mantidos com as pessoas ao redor ficassem frágeis, uma vez estarmos conversando com os pares apenas por meio de videoconferência.

“O trabalho, por exemplo, não é só o trabalho. É também o conjunto de relações sociais que são mantidas com os colegas. Então, quando nos deslocamos dessa teia de relacionamentos,  nos sentimos excluídos, de algum modo. Além do que, antes, saíamos de casa para ir ao local de trabalho e, no fim do dia, voltávamos. Agora, não. Dentro desse panorama, as pessoas acabam tendo a necessidade de se expor”, observa.

Trazendo como referência alguns estudiosos no ramo, Ricardo Jorge cita as pesquisas empreendidas pelo filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-chul Han. Em seus livros, o intelectual traz expressões como “sociedade do cansaço” e “sociedade da transparência” para designar as diferentes formas de comportamento desenvolvidas no mundo contemporâneo, isso muito antes da pandemia de Covid-19.

Duas questões emergem nesse contexto alimentado por Han: a primeira é que os males da contemporaneidade, na visão dele, não são mais males externos ao nosso corpo, mas que vem de dentro do organismo – algo que pode ser verificado ainda que com a emergência do cenário pandêmico, motivado por um mal externo.

Desta feita, como é possível tratar o problema se ele não é mais algo alheio a nós, mas está em nosso interior? “Nessa perspectiva, Han vai dizer – e eu tendo a concordar com ele – que boa parte das redes sociais digitais forçam aquilo que ele chama de coação icônica. Ou seja, somos coagidos a nos transformar em uma imagem e temos que estar dando exposição dela constantemente”, detalha Ricardo Jorge.

“Por isso que esse estudioso também fala de ‘sociedade da transparência’, na qual o indivíduo, de bom grado, expõe o que ele faz – obviamente, dentro de certos limites”, completa.

Fome de informações

No contexto da Síndrome de FoMO, o jornalista enxerga que ela surge porque, de fato, temos a necessidade do consumo de informações. Porém, no presente panorama, boa parte das imagens que as pessoas colocam para, digamos, consumo público, são, em geral, positivas. Na visão dele, isso pode demandar uma impressão de que aqueles que possuem muitos seguidores assim o são porque detêm algum tipo de magia, e essa magia está relacionada a estar nas redes o tempo todo. 

“A outra questão que leva a isso é que, como o ser humano é um ser social e estamos todos em casa no momento, há uma necessidade de que as pessoas atestem, para o círculo social delas, que elas existem. O modo de fazer isso é estando nas redes. Uma vez que isso vai criando uma oferta muito grande de conteúdos, os indivíduos começam a ter uma impressão de que tem coisa demais acontecendo no mundo e precisam saber para que estejam por dentro, criando uma espécie de obrigação individual de acompanhar tudo”, diz.
Ricardo Jorge
Jornalista e professor da Universidade Federal do Ceará

Por outro lado, conforme analisa, esse “estar por dentro de tudo” geralmente diz muito mais respeito ao próprio indivíduo do que ao mundo. “Então, muitas vezes, vai-se consumir uma excessiva gama de conteúdos que reforçam ideias, valores e ideologias das próprias pessoas, fazendo com que elas, não necessariamente, utilizem o potencial da internet e das redes para expandir conhecimentos. Ou seja, eu consumo muito mais aquilo que me interessa do que aquilo que é importante para mim”.

Dentre os tantos horizontes de discussão levantados pelo estudioso durante a entrevista concedida ao Verso, constam também pesquisas relacionadas ao caráter plástico do cérebro. Pelo modo mais rápido e curto de apresentação de conteúdos hoje, o órgão adquire o comportamento de não focar somente em um assunto durante muito tempo, mas fique constantemente “saltando” entre telas, configurando-se como “irrequieto”. Essa aceleração gera efeitos no cotidiano, capaz de impactar o sono, a alimentação e a prática de outras atividades para além da esfera digital.

“Estamos vivendo tempos muito acelerados e a Síndrome de FoMO, a meu ver, tanto é causa como consequência dessa aceleração. Penso que a internet vai estar aí, vai fazer as ofertas dela, e você só fica se quiser. Não à toa, algumas pessoas falam em fazer ‘detox digital’”, analisa Ricardo Jorge.

Se a gente parar pra pensar de modo lógico, bem poucas informações necessitam que as saibamos no exato momento em que acontecem. A maior parte das notícias – independentemente se soubermos de manhã, de tarde ou à noite, ou até no dia seguinte – não vão mudar a nossa vida. Assim, é preciso que tenhamos a noção de que nem tudo é tão importante quanto parece ou do quanto a gente quer se enganar dizendo que algumas coisas são importantes sem que elas sejam, efetivamente”, conclui o estudioso.

Tantos conteúdos audiovisuais

Uma vez ter se multiplicado a oferta de plataformas de streaming com conteúdos exclusivos nos últimos anos – sobretudo durante o cenário pandêmico – o crítico de cinema Robledo Milani, editor-chefe do portal Papo de Cinema, reflete que, de fato, é natural que o volume de ofertas tenha aumentado, levando em conta que as pessoas estão passando mais tempo em casa e, em tese, possuem mais tempo para se entreter.

Por sua vez, ao considerar o receio dos espectadores de não conseguirem acompanhar tantos conteúdos – típico da Síndrome de FoMO – o profissional contextualiza a questão com a própria forma de trabalho da equipe do Papo de Cinema. De acordo com ele, uma intensificação do acompanhamento das estreias de filmes acontece, sobretudo, durante a realização de festivais.

“Esses eventos são destinados a exibir filmes inéditos, que vão demorar muito para serem exibidos. E a gente sempre percebe que há muito interesse e curiosidade das pessoas com relação a esses títulos que ainda não chegaram ao acesso delas. É interessante como elas se preocupam em buscar coisas novas, até pela forma ilegal, via pirataria – quando há uma infinidade de ofertas de filmes mais antigos tão bons ou melhores do que aqueles que são ofertados de forma inédita”, compara.
Robledo Milani
Crítico de cinema e editor-chefe do portal Papo de Cinema

Logo, Robledo aponta que a audiência frequentemente acaba se concentrando somente naquilo que ninguém viu pelo motivo de quererem ser os primeiros a conferir. “Há essa necessidade de ocupar a dianteira, de ver uma coisa que ninguém mais viu. Por isso mesmo, os filmes recém-lançados acabam despertando mais interesse do que um grande clássico ou um filme super premiado que, apesar dos elogios, já estão aí, em domínio comum”, diz.

Tal reflexão emerge um ponto muito frequente nas redes sociais, relacionada ao famoso “a grama do vizinho é mais verde”. Há sempre alguém que assistiu a um filme primeiro, conferiu uma série antes de todos os amigos ou ostenta uma foto digna das postagens feitas por celebridades.

De que modo isso se relaciona com a Síndrome de FoMO? O psicólogo clínico Lucas Santos responde que, nesse contexto, é possível destacar dois quesitos. “O primeiro é que, em muitos momentos, utilizamos a comparação para analisarmos o lugar em que estamos em referência a outrem, e isso não é necessariamente bom nem ruim, o que importa é como isso nos afeta”, afirma.

“O segundo aspecto é que, ao tomarmos a vida do outro como aquela que ele posta nas redes sociais, ignoramos um processo natural a todas as pessoas, que é o de que passamos por momentos de sofrimento, infelicidade e dificuldades nos relacionamentos interpessoais. Um sentido da vida, por vezes, fragilizado, mesmo quando tudo na nossa exisitência parece estar bem e em ordem”, complementa.

Nesse sentido, ao nos relacionarmos com fotos e vídeos postados de celebridades ou digitais influencers de uma forma descontrolada e sem importantes ponderações, nosso olhar é capturado por um momento feito com uma finalidade específica de publicação. 

“Isso pode estar relacionado à síndrome de FoMO porque o sujeito, ao se interessar por uma constante atualização da vida de uma pessoa e de sua própria vida, coloca-se sempre em comparação com esse outro”, dimensiona.

“Penso que podemos considerar as redes sociais como um recorte de um mundo líquido, em que as relações são fluidas e tudo ocorre de forma rápida. Apesar de não haver uma relação direta entre esses pontos, há uma cobrança para que o sujeito esteja sempre conectado, atualizado e que mantenha esse comportamento como forma de não perder nada, alimentando uma ilusão de onisciência. Diante dessa demanda de informação e exposição, as pessoas devem avaliar o modo como se sentem ao aderir a esse movimento ou ao recusá-lo – melhor dizendo, quando o fazem de modo controlado”, conclui.
Lucas Santos
Psicólogo e mestrando em Educação pela Universidade Federal do Ceará