O lugar da saudade não existe. O que Diógenes Moura vivencia diante da ausência ocupa um outro espaço. É inclassificável. Um sentimento que irrompe da matéria e, de repente, salta pelos olhos e ouvidos, pelos chiados e sorrisos, transbordando na página. Mas caso haja palavra que se aproxime desse entendimento – conforme conta o escritor, curador e editor recifense durante entrevista por telefone – é oquidão, referente a estar oco. “Um lugar que um adjetivo não comporta”, diz.
Esse vocábulo no limítrofe de uma nomenclatura do sentir surge em dos capítulos de “Vazão 10.8 - A Última Gota de Morfina”, romance de estreia do consagrado literato – autor vencedor do Prêmio APCA, concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Oceanos. O livro ganha pré-lançamento nesta quinta-feira (24), a partir das 19h, durante transmissão pela plataforma Zoom. Dividindo o momento com Diógenes, estará o crítico e ensaísta Manuel da Costa Pinto.
Trata-se do primeiro romance assinado pelo escritor, cujo ofício criativo não se limita a denominações fechadas. Os outros oito livros escritos por Diógenes já comprovam isso. Desenvolvidos a partir de uma tessitura que caminha entre a poesia e a crônica, entre o conto e o registro memorialístico e fotográfico, eles embaralham os sentidos para deixar ganhar corpo o que há de mais essencial na construção textual: a entrega.
Em “Vazão 10.8 - A Última Gota de Morfina”, publicado pela Vento Leste Editora, essa característica não se perde, embora encontre um caminho de extrema singularidade. Segundo o autor, diferentemente dos outros títulos gestados por ele, este é um projeto que descortina uma trajetória só, a partir de apenas uma personagem. É Maura, irmã de Diógenes, vítima de um câncer fulminante no primeiro dia do ano de 2019 – dia do aniversário do autor. Maura, pessoa maior na vida do literato, que partiu, mas ficou, desenhando outros horizontes e heranças emocionais.
“Gosto de dizer que escrevo sobre existência, imagem e abandono. Esse livro tem uma narrativa romanceada, de uma novela, e conta a história de uma personagem entre duas cidades – na verdade, que nasce em Recife e que vai para Salvador – e cuja narrativa se estende até a cidade onde o autor vive, São Paulo. É uma história com começo, meio e fim e que não acaba na morte. É sobre a existência”, dimensiona.
O caminho do gesto
Recordando, com precisão, as datas nas quais iniciou e finalizou a escrita do romance – entre 30 de junho de 2018 e 26 de janeiro de 2020 – Diógenes Moura explica que o título da obra diz respeito à quantidade de morfina que a irmã estava tomando no momento do último suspiro, de modo a não sentir dor. Pouco menos de seis meses antes daquele instante, ela havia ligado para ele contando que havia sentido algo nas costas, feito um exame e detectado um tumor no pâncreas.
“Era um tumor grande – e a gente sabe que um câncer no pâncreas é uma coisa muito séria e, muitas vezes, sem solução. Então, peguei um avião e fui para Salvador e a acompanhei nos últimos meses”, recorda o autor. “Na verdade, sinto que esse livro que traz a história de Maura foi um longo caminho de oito livros até chegar a esse momento, nesse romance que se diz – porque a gente precisa de título para tudo – autoficcional. O que acontece é que havia uma coisa palpável, que era morte; uma perda; e uma figura muito importante na minha vida, que era a minha única irmã. A gente se gostava muito”.
Diógenes a descreve como uma mulher detentora de uma visão muito lúcida do mundo, que criou três filhos, se separou do marido e alimentava toda uma fortaleza em seu interior. A cada virar de páginas da obra, esses atributos ficam mais claros. Com economia de palavras e magnetismo no narrar, o autor perscruta a figura da irmã por entre detalhes do rosto, da personalidade dela e dos principais acontecimentos que a envolveram. Sai, assim, tateando, com muita propriedade e consciência, não apenas essas imagens, mas outras. Tantas.
O que entra em cena é a poética radiografia de uma família, de cidades, do tudo-tudo de um ser, com suas alegrias, desejos, vontades e limitações. “Eu tinha esse material na minha mão e, ao mesmo tempo, a certeza absoluta de que não daria para fazer um drama disso. Eu não poderia pegar uma morte – ainda mais no meio de uma pandemia – e falar da morte. Então, a obra tem a morte, mas o livro não morre. Costumo dizer que é sobre a vida, sobre ventos encarnados, sobre ‘lábios lentos’, como ela falava, e sobre arrepios. E também sobre algo que eu descobri – que eu já sentia isso há muito tempo – que é uma coisa maior que a saudade. Acho a saudade uma coisa muito amadora diante de determinadas coisas”, situa.
Sinfonia de representações
Não apenas na construção das personagens do enredo, mas também na forma de apresentá-los, Diógenes preza por uma dinâmica que oculta os nomes de quem vai sendo descrito na costura do verbo. Ficam apenas as iniciais de cada um, convidando o público a cativar uma maior atenção e a entrar em um jogo matemático, em que passado, presente e futuro povoam a mesma célula, embora não apenas.
A representação emerge como força no romance sobretudo porque, com inteligência, Diógenes vai avolumando o universo de Maura a partir dela própria – repare como existem M., o primeiro M., o segundo M., e assim por diante, num interessante cruzamento de referências.
“O mais importante foi saber como essas palavras estariam no lugar certo e na hora certa. Toda essa construção foi elaborada como se eu tivesse um segredo. É esse tipo de arquitetura. Parece que você vai abrindo uma caixinha e descobrindo as coisas. Foi talvez uma forma – não intuitiva, porque não foi intuição nesse caso, foi muito elaborado – de ir contando a história com uma certa leveza. Porque fazer drama seria muito fácil, né?”, reflete.
“Foi um ano e sete meses de travessias pela obra, e tudo muito dolorido, porque eu ainda estava, de certa forma, elaborando a ausência. Mas, ao mesmo tempo, também foi muito bonito. Foi muito representativo Maura ter morrido no dia 1º de janeiro. Eu não acredito em nada – não acredito em Deus, na humanidade, não acho que a gente tenha futuro, e é muito difícil você viver assim, porque seria muito mais fácil você acreditar em alguma coisa (e olha que eu sou feito e filho de Oxóssi) – mas houve essas paisagens. Tinha momentos em que estava tudo à beira, como se fosse um grande abismo. Nesses instantes, havia muito silêncio, em que foi preciso chorar, assim como momentos de graça e de humor, uma vez que a gente se divertia muito juntos”, completa.
Paralelamente a esse campo das representações, há outro processo textual alimentado por Diógenes na trama. Em cada capítulo, existem resquícios de um próximo, numa dança de passagens – semelhante ao efeito de um fade – de modo a antever o que está adiante. “O livro tem isso o tempo inteiro. Você pode parar, voltar para saber que letra era aquela, avançar, ir até o final quando descobre as outras coisas todas. Então, foi assim, a narrativa foi se impondo”.
Entre o verbo e a imagem
Todos esses detalhes também devem adentrar nas particularidades de outra linguagem, a do audiovisual, a partir do lançamento de um filme de média-metragem, homônimo, dirigido pelo cineasta Beto Brant. A proposta é mergulhar na obra, entrecruzando as diferentes fisionomias que a compõem. As filmagens acontecerão na própria casa de Diógenes – entre os objetos, os livros, as imagens, pinturas, esculturas, móveis, fotografias, álbuns de família e a luz do domicílio.
Sobre esse casamento do verbo com a imagem, o autor comenta ser algo basilar de seu expediente. “As imagens sempre apareceram, desde pequeno. Eu lembro de tudo. Eu lembro exatamente do primeiro dia em que eu peguei um papel para escrever. Era um papel de pão. Eu tinha oito anos. Morava num arrabalde de Tejipió, em Recife. Então, eu não estou livre disso – do ponto de vista da imagem – para sempre”.
A conversa com Diógenes Moura finaliza a partir de um questionamento sobre qual o lugar que a irmã ocupa no coração. De antemão, o autor evidencia a crença de que as pessoas que caminham conosco não morrem – logo, Maura, o pai, a mãe, um outro irmão dele, Edson, não morreram. Permanecem. E, então, logo ele parte para uma verdade muito profunda acerca da relação com a homenageada no livro: não era preciso terminar as frases com Maura.
“E, quando isso acontece, de você não precisar terminar a frase com alguém, tá tudo certo. Agora eu não tenho outra pessoa que eu não possa terminar a frase. Eu tenho que terminar todas – ainda mais nesse mundo que a gente vive”, diz. “Acho que essas pessoas não morrem, não. Tá todo mundo vivo por aí. Não estou dizendo com isso que existe vida depois da morte – eu tenho pavor dessa possibilidade, inclusive porque, se houver vida depois da morte, a gente não morreu. O que adianta? Mas a definição é essa: é você não ter mais uma pessoa em que mão seja preciso terminar uma frase”.
Algo que talvez responda uma incógnita que surge no livro e que fica pairando no ar: “Com quantas palavras se escreve um vestígio?”.
Serviço
Pré-lançamento do livro “Vazão 10.8 - A Última Gota de Morfina”, de Diógenes Moura
Nesta quinta-feira (24), às 19h, por meio da plataforma Zoom, neste link (ID da reunião: 863 4706 0991). Venda do livro pelo site da Vento Leste Editora. Os 50 primeiros exemplares vendidos ganharão convite para a sessão de pré-estreia do curta-metragem feito por Beto Brandt sobre o livro (data ainda a ser definida).
Vazão 10.8 - A Última Gota de Morfina
Diógenes Moura
Vento Leste
2021, 104 páginas
R$ 40