Em cada atuação artística, o dramaturgo, escritor, poeta e compositor cearense Alan Mendonça tem trajetória guiada sempre pela palavra. Da estreia na dramaturgia com a peça “As Luzes”, de 2000, o artista chega em 2024 laureado com o reconhecido Prêmio APCA de Melhor Dramaturgia, da Associação Paulista de Críticos de Arte.
O reconhecimento recebido foi pelo texto do espetáculo “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto”, do Grupo Clariô, de Taboão da Serra (SP), em parceria com os artistas Cleydson Catarina, Naruna Costa e Uberê Guelé. Neste Dia Mundial do Teatro, Alan compartilha com o Verso passos desse caminho e reflexões sobre a “palavra criativa” e a dramaturgia.
Primeiras experiências de criação
A gênese de toda essa trajetória, Alan reconhece, veio da “sorte de nascer em uma casa com muitos livros e discos”, assim como os três irmãos. “Meu pai apostou na ideia de que a intelectualidade levasse os filhos a terem grandes empregos. Por outro lado, fui criado por duas mulheres, uma mãe e uma tia, muito musicais”, contextualiza.
“O encontro entre a cultura letrada dos ‘investimentos’ de meu pai com o empirismo sonoro e criativo de minhas mães e com as primeiras escritas de meus irmãos mais velhos formou em mim a ciência de que brincar de criar era algo corriqueiro, do cotidiano. Fui mergulhando na ludicidade disto e, de certa maneira, é assim até hoje”, compreende.
A partir das influências musicais da mãe e da tia, Alan teve as “primeiras experiências de criação” na “escrita da palavra cantada”. “Um dia achava que seria músico e findaria aquelas canções em uma carreira de cantor. Na verdade, ali nascia o letrista, não ainda o poeta nem o dramaturgo”, reconhece.
Estreia como dramaturgo
Após acumular as “quase-canções” que criava sozinho, o artista destaca o encontro com o grupo musical Argonautas como um passo importante no desenvolvimento artístico. O conjunto era ligado ao coletivo Patacatus, que preparava em 1999 um espetáculo multilinguagens.
“Em uma das reuniões para o espetáculo, comentei de um enredo ainda não escrito de uma peça que pensava em escrever. Assim acontece a minha estreia como dramaturgo, com a peça ‘As Luzes’, dirigida por Yuri Yamamoto para o espetáculo ‘Esta noite, Patacatus’, no início do ano de 2000”, segue Alan.
“Marco o tempo de minha carreira a partir desse espetáculo”, reconhece. “Minhas primeiras experiências com a palavra criativa foram com a palavra cantada, depois com a palavra cênica e, só depois, com a palavra de papel, para livros”, resume.
“O que aproxima as escritas literária e dramatúrgica, é a matéria-prima: a palavra; e, como toda arte, a coautoria com um outro: leitor, ouvinte, espectador... O que difere as duas escritas são os ‘palcos’ onde ‘atuam’”, reflete Alan.
O “palco” da literatura “de papel” é a folha, física ou virtual, onde palavras se espalham em espaços preenchidos ou vazios e o leitor, enquanto coautor, cria mundos, criando “solto” sobre o que está “preso” à folha. A palavra dramatúrgica cria vida nos diversos palcos possíveis ao cênico e nos sentidos dos espectadores, que são coautores e criam a partir das imagens expostas ou sugeridas, dos sons e dos silêncios, tudo isto sendo palavra dramatúrgica.
Processos coletivos
Desde que estreou escrevendo para teatro com “As Luzes”, apenas esta primeira obra foi escrita somente por Alan. “Todos os outros processos de escrita teatral nos quais me envolvi nasceram de um convite por parte de um diretor ou de uma diretora, que tinha uma ideia em mente e me chamou para encontrar as palavras dentro de um processo intensamente dialogado e, muitas vezes, envolvendo todo o grupo que iria encenar aquele determinado espetáculo”.
Um processo do tipo — descrito pelo artista como “muito rico de aprendizados, de aberturas de mundos, de caminhos humanos e artísticos — ocorreu justamente em “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto”. O espetáculo surgiu a partir do contato entre ele e o Grupo Clariô.
Apesar da obra ser do ano passado, a gênese do encontro, é possível considerar, data originalmente de 2005, ano em que Alan conheceu a família do também cearense Cleydson Catarina, formada por brincantes de reisado.
Por anos, o então grupo de Cleydson, “Cavaleiros da Dama Pobreza”, e Alan se apresentaram com espetáculos criados em parceria entre eles. As travessias da vida levaram a dupla a trabalhar em conjunto novamente, dessa vez já em São Paulo.
Na região do Campo Limpo e Taboão da Serra, já mais recentemente, Cleydson se aproximou do Grupo Clariô de Teatro — “um coletivo negro, forjado na periferia paulistana, com 19 anos de pesquisa artística baseada na expressão popular, capaz de movimentar as estruturas políticas, rever conceitos e estabelecer novas formas de sociabilização”, como define Alan.
"Boi Mansinho"
Em 2018, Cleydson convidou o parceiro para escrever uma peça sobre a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, movimento ocorrido no Cariri cearense no século XX e marcado na História por um massacre por parte do então governo federal.
“Por quatro anos, alimentamos o desejo pela montagem, pesquisando, rascunhando e sonhando artes. A escrita do texto, a composição das músicas e a montagem só aconteceu durante o ano de 2022”, quando “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto” estreou no Espaço Clariô de Teatro.
Já em meados de 2023, o espetáculo teve temporada no Sesc Pompeia, circulou por outras unidades do Sesc de São Paulo e também em eventos de teatro. A repercussão, tanto de público quanto de reconhecimentos, foi positiva.
“No fim do ano passado, ele ganhou o Prêmio Leda Maria Martins na categoria Ancestralidade. No começo desse ano, ganhou o Prêmio APCA, na categoria Melhor Dramaturgia. Agora, em março, a música do espetáculo ganhou o Prêmio Shell”, elenca.
“O espetáculo é feito de nossas verdades, de nossas profundidades que voam pelo cênico. Os prêmios são consequência disto e é muito bom que isto seja percebido e dialogue com quem decide, é um sinal de comunicação que o conjunto de símbolos e semânticas presentes no espetáculo reverberem em outros tantos seres, por nossas essências de passado e futuro”, reflete.