Muitos escritores acalentam o sonho de ver a própria obra traduzida para outros idiomas, a fim de que mais pessoas tenham acesso ao conteúdo literário produzido. No caso da poetisa cearense Nádia Camuça, 30 anos, recentemente esse desejo se somou à preocupação em oferecer um material inclusivo. E, neste sentido, ela buscou a tradução para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) do seu primeiro livro, “Meus Fantasmas Dançam no Silêncio”, lançado no último dia 16 de janeiro, em português (digital) e videolibras.
Para chegar aos 10,7 milhões de brasileiros com deficiência auditiva existentes no Brasil - 2,3 milhões com deficiência severa -, segundo dados de 2019 do Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda, Nádia contou com o trabalho da tradutora de Libras e Língua Portuguesa, Gracy Kelly Amaral Barros, 22 anos, que é ouvinte e também poeta.
“Durante o processo de tradução, a Gracy me pediu que eu enviasse áudios de todos os poemas, pois ela também queria traduzir a partir do modo como era a entonação deles para mim. Além disso, conversamos bastante sobre o significado de cada poema, então foi um processo de inclusive refletir muito sobre a minha obra. Eu nunca havia explicado de onde surgiram as imagens que criei, e foi preciso que eu falasse qual o sentido dessas imagens para que ela pudesse traduzir da melhor forma”, conta Nádia.
Entre as temáticas presentes no livro, estão a relação da autora com o processo de escrita e vivências pautadas pela violência de gênero, por exemplo. Tudo isso ganhou expressividade visual na tradução.
“O processo tradutório de poemas é super sensível, porque nós tradutores temos responsabilidades imensas em contemplar: informações explícitas, implícitas, estilos, sensações antes da escrita e durante a escrita, estudos culturais. Não simplificamos, não explicamos, não decodificamos, mas nós traduzimos, isso consiste em fazer pontes entre o expresso em uma língua para outra. O devaneio, a loucura, o erótico, o sentimento de luta, foram sentimentos norteadores das escolhas tradutorias”, contextualiza Gracy Kelly.
Estratégias visuais
Para transmitir tudo isso, a tradutora fez escolhas visuais de roupas, maquiagens e fundos que influenciaram nas interpretações. “A maioria das pessoas pensa que o tradutor de Libras usa apenas roupas pretas. Os artistas aprendem muito quando se permitem aproveitar os processos de acessibilidade em suas artes”, alerta Gracy.
“Não me preocupei muito com meu cabelo assanhado em certos takes, devido ao estado da eu-lírico, assim como maquiagens borradas. Todas essas escolhas partem das experiências poéticas entre o texto fonte e o pretendido. A dinamicidade entre as vestimentas leva ao leitor ao: envolvimento, entretenimento, ao prazer da próxima cena e à ampliação das suas interpretações”, observa a tradutora.
A professora de Libras do IFCE Camocim e contadora de histórias Lyvia Cruz, que é surda, teve a oportunidade de assistir o videolibras do livro “Meus Fantasmas Dançam no Silêncio” e reconheceu todas as estratégias utilizadas por Gracy.
“Não é fácil traduzir as poesias da Nádia Camuça e eu parabenizo a tradutora Gracy Kelly por ter feito esse processo tradutório levando em consideração aspectos visuais, estrutura gramatical da língua de sinais, contemplação da cultura surda, expressões faciais, corporais. Muitos tradutores apenas seguem a língua portuguesa, o que está escrito no papel. São raros, raríssimos os tradutores que conseguem contemplar aspectos artísticos, poéticos. Fiquei muito satisfeita com o resultado final”, opina.
Lyvia já fez algumas traduções de literatura infantil, na maioria das vezes da língua portuguesa para Libras, além da tradução de materiais didáticos, como jogos educativos para surdos e ouvintes. Alguns desses trabalhos estão disponíveis em seu Canal no YouTube, criado em parceria com o esposo, Joab Alves, que é profissional de Marketing.
Recentemente, ela participou do Cine Pipa, mostra audiovisual infantil promovida pelo Cinemul e viabilizada pela Lei Aldir Blanc, com a contação da história “Mara e o Peixinho” em videolibras. Na ocasião, contou com a parceria de Gracy. Em outra oportunidade, também traduziu a contação de Carol Levy, mas reconhece que essas demandas ainda são bem raras.
“Por vezes, há desequilíbrios visuais cometidos por tradutores ouvintes, mas ter ali um tradutor surdo na equipe permite que esses ruídos possam ser adaptados, possam ser melhorados. Essa atuação bilíngue, multicultural entre uma equipe de tradutores, tendo a presença de surdos, profissionais tradutores/intérpretes é de extrema importância”, sugere, na expectativa de que os convites sejam mais frequentes.
Pandemia
Tanto Lyvia como Gracy reconhecem que, de 2020 para cá, muitos passos foram dados em direção a uma cultura mais inclusiva, especialmente no que diz respeito às janelas de Libras inseridas nas lives de grandes artistas brasileiros. No entanto, ambas chamam atenção para que práticas como essa não sejam esquecidas daqui para frente.
“Ser momentâneo nos distancia de uma sociedade inclusiva de fato. Precisamos de mais ações não momentâneas e que não partem apenas de iniciativas individualizadas de artistas. Por que os teatros, museus, por exemplo, não possuem tradutores de Libras efetivos para a comunidade surda poder escolher a qual peça assistir, por exemplo? Por que não há seções exclusivas nos jornais para Literaturas em diferentes línguas serem expressas?”, provoca Gracy.
Ao que Lyvia completa: “Eu espero que futuramente a gente possa ter mais reconhecimento ainda. A comunidade surda não se conforma do jeito que está. Está bom assim? Não. Queremos mais inovações, queremos mais produções, queremos cada vez mais melhorar a acessibilidade”, conclui.
Serviço
Contatos das tradutoras/intérpretes:
Instagram @gracykelly_libras e @lyviacruzlibras