Quando se é criança, uma mesa não é apenas uma mesa, panela não serve só para alguém fazer comida, e tudo que é de plástico, metal ou papel também pode ganhar outra utilidade: servir a batucada como um instrumento musical. Acontece que nem sempre essa experiência sonora fica só na brincadeira da infância. Ela pode ganhar um tom profissional quando trabalhada por músicos de ouvidos atentos a coisas e objetos do cotidiano.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com o percussionista Igor Caracas e a educadora musical e musicista Amanda Nunes. Ambos cearenses, eles chegaram aos 32 anos sem deixar para lá as primeiras descobertas que fizeram no campo da sonoridade. E hoje, esses experimentos estão na linha de frente dos principais trabalhos que desenvolvem.
“Teve um dia, ainda criança, em que eu descobri que o tamborete de plástico da cozinha tinha um som incrível! Tocando com as mãos ou com os dedos, via que o jeito com que eu o tocava variava seu som, às vezes mais agudo, às vezes mais grave. Levei ele para o meu quarto, botei para tocar o cd da Timbalada e ali fiquei tocando sem parar. Foi aí que despertei minhas mãos e fui desenvolvendo a minha técnica para tocar em tambores”, relembra Igor, que já integrou grupos como Saulo Duarte e a Unidade, La Cumbia Negra e Breculê.
Idealizador do projeto “Percussão, Descoberta e Criação”, ele cedo entendeu que a forma como aprendeu a tocar podia ajudar outras pessoas a se relacionar melhor com a música e a conseguir se expressar com o que tinha disponível. “A música não está escondida em conservatórios nem em instrumentos clássicos, a música está em todo lugar, inclusive dentro da gente. A natureza nos fala isso o tempo inteiro. E os sons estão por aí para serem descobertos”, enfatiza o percussionista.
Atualmente, Igor difunde essa ideia em oficinas (para adultos e crianças), vídeos no Instagram e no YouTube, um projeto de mestrado em andamento na Universidade de São Paulo (USP) e também por meio de um novo disco em gestação. “O retorno mais comum é a surpresa das pessoas ao verem que é mesmo possível fazer música com coisas que não sejam consideradas instrumentos. Além do sentimento de que a música está perto, não é algo distante ou até inatingível”, explica.
Pandemia aguça sentidos dentro de casa
Durante esse período de isolamento imposto pela pandemia de coronavírus, Igor começou a publicar a série de vídeos Coisas e Sons, na qual aparece batucando elementos como interruptor, fio dental, pia, mesa, parede, refratária e também artigos naturais, como frutas e troncos de árvore.
“Essa é minha realidade desde criança, sendo bem sincero. O tempo inteiro batucando nas coisas e descobrindo novos sons. Mas de fato, a quarentena fez com que eu ficasse mais tempo em casa e, consequentemente, passasse mais tempo ainda batucando nas coisas aqui. E também despertou em mim a vontade de dividir isso com as pessoas virtualmente, não só nos encontros da oficina. Já que estamos todos em casa, quis mostrar um pouco do meu cotidiano sonoro”, explicita.
O mesmo sentimento tem movido a musicista Amanda Nunes. “Durante a pandemia, por estar mais tempo dentro do apartamento, passei a prestar mais atenção aos sons de dentro de casa, sons constantes como o da geladeira, do gelágua, dos ponteiros do relógio da sala, o vento nas folhas das árvores, cantos de pássaros, sons dos apartamentos vizinhos... vez por outra gravo e salvo no celular algum som interessante ou mesmo alguma improvisação sonoro-musical que possa surgir num momento”, partilha.
Esses exercícios de experimentação sonoro-musical, segundo Amanda, contribuem para estimular a autonomia e a criatividade na busca e na construção das sonoridades dos objetos de casa; aguçar a percepção auditiva e corporal, a coordenação motora; além de promover momentos de socialização e afetividade em casa.
Desde 2009, ela integra, com Lenina Silva, o projeto Duoal, a partir do qual realizam pesquisas, cursos, vivências e apresentações artísticas voltadas para as relações entre corpo e música e suas possibilidades pedagógicas, artísticas e comunicativas. Isso envolve também a relação do corpo com as paisagens sonoras e seus objetos constituintes.
Na área da Educação Musical, a cearense vem desenvolvendo trabalhos com objetos do cotidiano em aulas de musicalização em espaços diversos, desde projetos socioassistenciais em Fortaleza – Instituto Dr. Rocha Lima de Proteção e Assistência à Infância (IRL) e Casa de Vovó Dedé (CVDD) - até escolas de música, espaços de ludicidade, cursos e oficinas.
Na performance musical, ela tem cada vez mais inserido objetos alternativos no set percussivo, como colheres, panelas, chocalhos, molho de chaves, e até caixa de pizza que, colocando miçangas ou grãos dentro e girando, faz um efeito de som de mar.
O que eu acho encantador nas experiências musicais com objetos do cotidiano é exatamente a acessibilidade, a liberdade criativa e a ludicidade”, enumera.
Técnicas e inspirações
A professora de percussão do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC), Catherine Furtado, explica que o ato de percutir sugere por si só formas de explorações sonoras tais como arrastar, deslizar, esfregar, chocalhar, balançar, entre outras.
Esses movimentos são pertinentes quando as pessoas precisam executar tais experimentos em atitudes simples e corriqueiras, como o balanço de chaves, abertura de garrafas, o mexer de uma panela e das mais diversas formas que se cria a relação movimento e objeto do cotidiano”, pontua.
Segundo ela, essa relação do som com o ser humano foi sempre presente e contínua por meio da paisagem sonora, um conceito trabalhado pelo educador musical R. Murray Sachafer.
“A própria relação do ser humano com a natureza nos motiva a pensar que esses registros foram identificados com essa interação humano-natureza-sons. O vento, as folhas, a água, os pássaros e demais cenários naturais demonstram que essa paisagem sonora é dinâmica, construída e também desconstruída pelo exercício humano de escutar, promover e criar sons”, contextualiza.
Trabalhar com percussão nas aulas remotas (virtuais) realizadas na pandemia tem sido uma forma de se identificar com esses recursos e também de adaptar objetos domésticos para conduzir novas experiências.
Na possibilidade dessas adaptações, temos o ganho em manter a relação ensino e aprendizagem em movimento e atualização. Não se trata de querer substituir um instrumento convencional por um outro não-convencional, mas sim permitir uma possível escuta e execução que proporcione criatividade, interação e a imersão com novos sons e objetos que também são feitores de timbres e alturas”, avalia.
Como referencial teórico para esse trabalho, Catherine tem utilizado o livro "Colherim: ritmos brasileiros na dança percussiva das colheres", do artista e professor Estevão Marques, que para além da contextualização histórico-cultural também traz um repertório diverso com a rítmica brasileira para execução com colheres, explorando sonoridades tais como as oferecidas por agogô, pandeiro, tamborim e reco-reco.
Amanda Nunes também se vale dessa referência teórica, além das técnicas de percussão corporal propostas por Fernando Barba (grupo Barbatuques) e por Marcus Vieira, este nos livros “Aprenda a batucar” e “Batucanetas”. Igor Caracas, por sua vez, acrescenta à lista a pesquisadora Teca Alencar de Brito, referência nessa prática aplicada à educação musical infantil e atual orientadora do seu projeto de mestrado.
Outros artistas, como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Narcélio Grud e ainda grupos musicais, a exemplo de Stomp – originado no Reino Unido – e Quabales – um projeto socioeducativo cultural em Amaralina, Salvador (BA), idealizado por Marivaldo dos Santos, são citados pelos cearenses nesse “laboratório” vivo de sons e movimentos.
Desafios a enfrentar
Com a utilização de livros pedagógicos, a apreciação e divulgação de trabalhos artísticos, a professora Catherine Furtado percebe que cada vez mais essa proposta musical é bem acolhida e desenvolvida por todos os interessados na área. Há, no entanto, algumas exceções, como aponta Amanda Nunes.
“Pode haver uma frustração ao se comparar as sonoridades dos objetos sonoros do cotidiano com as sonoridades dos instrumentos percussivos tradicionais, e isso pode gerar uma depreciação ou uma ideia simplista desses objetos sonoros e é evidente que os sons, timbres e a manipulação deles nunca serão iguais”, observa.
Sobre isso, Igor Caracas se posiciona de forma prática. “Eu tenho o maior prazer em ajudar nessa desconstrução porque eu sempre defendi que instrumento é um meio, uma forma de expressar a musicalidade que trazemos dentro da gente. A música está dentro e nós podemos expressá-la com o que tivermos à disposição”, defende.
Para ele, a percussão é extremamente generosa no acesso e nos encontros.
No acesso porque, se formos sensíveis, podemos tocar qualquer coisa de maneira percussiva e fazer soar muito bem. Generosa porque é, por essência, algo coletivo. Instiga o encontro com o outro. Cada pessoa contribuindo de uma forma. Mas, para tocarmos juntos, precisamos escutar a outra pessoa e é assim que construímos algo verdadeiro e inclusivo”.
Então, que tal começar uma experiência musical?
Seguem algumas dicas da musicista Amanda Nunes:
1 - Faça uma pesquisa na sua casa, buscando objetos que emitam sons que você ache interessante;
2 - Experimente um objeto por vez, dedique-se a explorar livremente os seus sons, com atenção;
3 - Escolha músicas que você goste para tentar tocar junto;
4 - Experimente criar suas próprias músicas;
5 - Pesquise na internet vídeos, links, referências sobre o assunto;
6 - Seja feliz fazendo música com todo e qualquer objeto que vibra!
Serviço
Igor Caracas: @igorcaracas
Em breve, versão virtual da oficina Percussão, Descoberta e Criação para crianças de 6 a 10 anos. Dia 10/04, sábado, das 9h às 10h30 via Google Meet. Inscrições: enviar um e-mail com o assunto Oficina Percussão Igor Caracas e comprovante de transferência do valor de R$80. O pagamento será via Pix (chave pix: igorcaracas@gmail.com). As vagas são limitadas. Serão oferecidas bolsas integrais para alunos de escola pública.
Amanda Nunes: @amandanunesmusica
Projeto Duoal: @duoal.duo
Instituto Dr. Rocha Lima de Proteção de Assistência à Infância: @somosirl
Casa de Vovó Dedé: @casadevovodede
Catherine Furtado: @catherinetambor