Crítica ao consumismo é tema de 'Eles vivem', filme cult que pode ser visto em streaming

Dirigida por John Carpenter, a ficção-científica de 1988 não agradou à crítica em seu lançamento, mas hoje goza do status de clássico

They Live” (“Eles vivem”) entrou no catálogo brasileiro da Netflix, sem alarde, no último dia de março de 2021. Mistura de ficção científica e filme de ação, a produção de 1988 foi mal nas bilheterias e não agradou à crítica. Não chegava a ser vista como um dos pontos altos da carreira de John Carpenter – diretor de “Halloween” (o primeiro, de 1978), “Fuga de Nova York” (1981) e “Os aventureiros do bairro proibido” (1986). 

Sua sorte mudaria nos anos seguintes. Há pelo menos duas décadas, “They Live” vive numa espiral de reavaliação e de valorização. Ganhou status de cult, graças à estética de filme B e à sua crítica social. Chegou a ser selecionado, em 2018, para exibição na mostra de clássicos do Festival de Cinema de Veneza.

Na história, John Nada (o sobrenome, apropriado, não é uma coincidência) é um operário desempregado que chega em Los Angeles a procura de trabalho. Consegue uma chance mal remunerada e vai viver numa ocupação de sem-teto. Ainda assim, acredita na América

Cai em suas mãos um par de óculos capaz de desvelar a realidade. Ao usá-lo, Nada descobre que vive cercado por criaturas que mais parecem mortos-vivos de cor azul e que, sob cada publicidade, de cada produto que se consome, se escondem mensagens subliminares. Obedeça. Não pense. Consuma. Conforme-se. Submeta-se. 

Carpenter escreveu “They Live” a partir de um conto do escritor e cartunista Ray Nelson, “Oito horas da manhã”, e da adaptação da história para os quadrinhos, feita pelo autor, em 1986. A história não vai longe da tradição “invasores de corpos”. 

Nas mãos do diretor, contudo, a crítica é menos mecânica e ufanista. Os alienígenas dos anos 1950 eram uma tradução fantasiosa dos temores do americano médio: russos e comunistas em geral. O inimigo, em “They Live”, representa a cobiça de um mercado desenfreado, alienante, que tenta ocultar suas maquinações e que está disposto a eliminar, por quaisquer meios, seus críticos. 

Metáfora para a ideologia  

Ainda que “They Live” não figure entre os melhores filmes de John Carpenter, não lhe faltam méritos. O principal deles é que o diretor não alimenta a paranoia do público; ele leva a sério sua crítica, mas trata a história como uma sátira e, como tal, quer fazer rir. O diretor não tenta vender o filme como se fosse um produtor mais inteligente do que de fato é

A estética é a de baixo orçamento, com efeitos especiais que parecem estranhos. Carpenter também cria cenas insólitas, capazes de surpreender o público mesmo quando opta pelo clichê (são exemplos a longa cena de luta, no meio do filme; e a sequência do despertar do protagonista).

Seu herói é um brutamontes que tenta desmontar uma conspiração na pancada e atirando para todos os lados. Roddy Piper, estrela da luta-livre canadense, interpreta Nada e faz dele um herói meio canastrão, meio cômico, com evidentes toques de Stallone, a referência do herói musculoso que faz às vezes de homem comum.

Crítica ideológica  

Admiradores, do cinema, da literatura e até do campo filosófico, aqueceram o nome do filme. Bandas punks como Green Day e Anti-Flag se valeram do conceito dos óculos da realidade de John Nada em videoclipes com mensagens críticas.

Na última década, "They Live" ganhou edições de luxo em formatos como o Blu-Ray. Em Hollywood, já se falou em remake (com Carpenter produzindo), recuperando elementos do conto e da HQ que lhe deram origem.

O escritor norte-americano Jonathan Lethem chegou a escrever um livro sobre o filme ("They Live", de 2010) - um de seus favoritos. O artista visual Shepard Fairey também usou conceitos do filme em seu trabalho e, nas redes sociais, os aliens azulados multiplicaram-se, com feições famosas de Mark Zuckerberg, Donald Trump e até de Jair Bolsonaro. 

"They Live" é um dos filmes comentados pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, no documentário “O Guia Pervertido da Ideologia” (The Pervert's Guide to Ideology, de 2012). "O filme é, definitivamente, uma das obras-primas esquecidas da esquerda de Hollywood", avalia o filósofo.

Segundo ele, o herói John Nada usa óculos "de crítica à ideologia", na linha de entendimento das ideologias como falsas consciências que falseiam a realidade das coisas. O filósofo elogia a construção feita por Carpenter da passagem dolorosa da alienação para a consciência. Pensar, não é fácil. Com "They Live", fica pelo menos mais divertido.