José Dumont, Woody Allen, Chris Brown. Armie Hammer, Guilherme de Pádua, Kevin Spacey, Johnny Depp. Se a lista te parece longa, é porque ela é mesmo. Infelizmente.
Em comum entre todos esses nomes, o fato de serem homens, artistas e envolvidos em atos de abuso e violência. Talvez não menos reconhecidos no que fazem. Alguns até brilhantes. Mas tão hediondos quanto.
Perversidade que corrói e decepciona. No último dia 16, a atriz Alice Wegmann se posicionou sobre o mais recente crime envolvendo um homem do meio artístico. O ator José Dumont foi preso em flagrante com vídeos de pornografia infantojuvenil. Ele também é investigado por suspeita de estupro de vulnerável e atos relacionados à pedofilia.
“É um choque quando alguém que a gente admira é acusado de um crime absurdo. Um sonho perdido, uma desilusão. Trabalhei com o Zé, que foi um ótimo ator no set de ‘Onde Nascem Os Fortes’. Mas ler o que lemos ontem e hoje deixa qualquer um fora do eixo, desapontada e preocupada”, publicou a global nas redes sociais.
Junto a ela, outras famosas, a exemplo de Lúcia Veríssimo, Natália Lage e Maria Padilha, comentaram o caso. “Jamais passou pela minha cabeça, em nenhum momento, que ele pudesse praticar esses atos. Nunca em tempo algum eu consegui enxergar qualquer desvio de conduta”, apontou Lúcia. Ao que Natália reforçou: “Muito triste”.
O que fazer, então, com a arte desses homens deploráveis? Como é possível continuar a gostar das obras por eles protagonizadas ou realizadas? Podemos? Devemos? “É importante compreender que consumir material produzido por essas pessoas é, mesmo que indiretamente, reafirmar a importância e relevância delas no cenário artístico”, opina a psicóloga clínica Brena Mendes do Nascimento.
Segundo ela, merece análise os tantos casos de agressores denunciados e sentenciados por atos violentos que continuam sendo escalados para grandes produções em nome do valor agregado proporcionado por eles. Isso pode gerar o entendimento que, em nome desses trabalhos, tudo é relevado, inclusive crimes hediondos.
“Questionar sobre o que você consome é fundamental, tendo em visto que isso alimenta a indústria responsável por incentivar ou cancelar produções que envolvem essas pessoas”.
Persona pessoal e profissional
Há outra questão que se interpõe: como podemos fazer a distinção entre a persona pessoal e a persona profissional? É possível dissociar as duas? Por que, em geral, nos decepcionamos tanto quando algo do gênero acontece?
Nesses casos, conforme Brena Mendes, relatos exaltando as qualidades não são incomuns – o que, por vezes, acaba por descredibilizar as denúncias das vítimas. Pode uma pessoa tão boa e amável cometer uma atrocidade dessas? “As pessoas encontram dificuldade em compreender que o que é demonstrado por eles não resume quem são. Há conteúdos não expostos que também fazem parte da vida de alguém”.
Ou seja, o fato de um indivíduo ter comportamentos gentis não significa que ele seja apenas isso ou que esses comportamentos sejam os únicos passíveis de existirem. A mesma percepção é alimentada por Hugo Iglesias Torres de Moraes, psicólogo junguiano, palestrante e pesquisador em Psicologia. Para ele, as duas personas podem se unir por meio da ética.
“Um lado da vida mais aparente para os outros não necessariamente implica na exclusão do lado oposto, mais evidente para a própria pessoa e para aquelas de seu círculo íntimo. A persona – termo cunhado pelo psiquiatra suíço Carl Jung – designa o fato de que, para o nosso próprio bem, necessitamos desempenhar diferentes papéis sociais a fim de nos adaptarmos às demandas da vida cotidiana”.
A dissociação referente a esses aspectos parece vir por meio da identificação de que fulaninho é a melhor pessoa do mundo ou de que sicrano é o diabo em forma de gente. Não à toa, essa tendência de literalizar algo dinâmico, de ser acrítico, é o que gera notícias bombásticas. Algo que costuma aparecer nesses momentos de choque é a dificuldade em analisar e determinar o que de fato foi ingenuidade e o que pode ter sido complacência por parte daquelas figuras mais próximas, a exemplo de amigos, colegas de trabalho e familiares.
“Por mais que o lobo possa vestir uma pele de cordeiro ele continua sendo um lobo, sinalizando um comportamento como tal. O deslocamento de persona grata para persona non grata não acontece do dia para a noite”, afirma Hugo.
“Acho que revisar a arte, a fantasia de alguém que cometeu crimes hediondos, é muito mais abstrato, algo muito mais distante do que ter de olhar para a realidade nua e crua de uma pessoa que pode ter cometido crimes inimagináveis”.
Logo, para ele, se você amou a obra de alguém, isso é algo que fez parte de sua vida. O que vai adiantar fazer política contra o passado? “Isso não necessariamente implica em um amadurecimento. Agora, a opinião que você tem do artista e o modo sobre o qual você consome a produção depois de um momento como esse, pode, sim, mudar a partir de então”.
O valor do diálogo
Por isso mesmo, sobretudo para potenciais vítimas de pessoas assim, é essencial a atenção aos sinais. Por mais sutis que sejam, eles estão presentes. De acordo com Brena, “não dá para escapar de si, então em algum momento eles acabam por demonstrar algo – seja por meio de insinuações, violência psicológica ou atos em si”.
O diálogo, enfim, é sempre a melhor saída. Conversar com outras pessoas, acolher, pedir ajuda e denunciar são importantes para tentar preservar novas possíveis vítimas. “Vale salientar que monstros são seres imaginários com aspectos aterrorizantes, distantes da realidade. Ao equiparar essas pessoas a monstros pode haver uma distorção que comprometa a identificação dos agressores. Por vezes, eles são pais, irmãos, amigos, colegas de trabalho”.
Assim, as vítimas se sentem desamparadas e não assistidas. É fundamental compreender que agressores são pessoas do convívio social que diferem totalmente da ideia monstruosa que conhecemos. Esse ponto faz o psicólogo Hugo Moraes tecer reflexões sobre esses homens do mundo artístico que cavaram e caíram na própria desgraça.
O profissional acha curioso o fato de que o que parece ser buscado no momento inicial de revelação é a análise do legado do artista e nem tanto a situação abominável em questão. “Creio que isso fale mais sobre o sintoma do público em geral do que sobre o problema social. Talvez retrate algo sobre como acontece essa quebra de imagem, de projeções, e como isso provoca uma revisão sobre o problema do mal nas vidas de cada pessoa. Também desperta a incógnita de como lidar com um fato que agora se prova ser inalienável”.
Na visão dele, o homem deve ser colocado no microscópio – analisado legalmente até não restar qualquer dúvida sobre os crimes dos quais é acusado. Feito isso, deve ser julgado adequadamente. Inverter a ordem desse processo, diz ele, “é uma resistência de lidar com uma verdade brutal e criar uma polêmica que distancia a investigação e a responsabilidade de lidar com algo que, querendo ou não, faz parte da história da humanidade, por pior que seja”.
Artistas ambiciosos são cruéis?
Nos estudos da Psicologia, existe um fator básico da personalidade – um entre cinco – denominado de “abertura à experiência”. Ele retrata sobretudo a porcentagem sobre a qual o indivíduo preza pelo encontro constante com novidades e com o que diverge do status quo. Artistas em geral, bem como figuras intelectuais, costumam obter um alto escore nesse fator.
Isso possivelmente indique o fato de que esses indivíduos sempre estão em busca de algo novo – igualmente em constantemente em sofrimento por não se satisfazer com aquilo que já é conhecido, que já foi assimilado por ele.
A “monstruosidade” talvez esteja exatamente na presunção de alguns artistas que já chegaram a um certo patamar e que, por conta disso, podem descansar e desejar tudo que quiserem. “Esse parece ser o grande desvio”, argumenta Hugo, “acreditar que a realidade é puramente algo criado pela própria pessoa, que tudo é um ato criativo e que, portanto, a realidade dos outros pode ser negada e desprezada. Essa negação é perversa”.
Por fim, o valor estético de uma obra se sustenta por si só, indo além do processo de feitura e da pessoa à frente da realização? É possível dissociarmos uma coisa da outra? “‘Arts totum requirit hominem!’, a arte requer o homem inteiro. Isso já era dito na Idade Média para se referir ao fato de que a arte é produto do homem que a produz, assim como o homem é produzido por meio de sua arte”, contextualiza o psicólogo.
Logo, o valor estético demonstra a capacidade daquele conteúdo em ser contemplado, assim como as reverberações que esse lampejo do “todo” tem em animar a vida individual e a cultura local. Quando algo é verdadeiro, se sustenta por si só. Quando algo é falso, eventualmente cai por terra de uma só vez.
Isso pode ser visto na explicação recente de Dumont sobre os motivos de ter em posse conteúdos de menores de idade, justificando que tudo não passava de uma pesquisa artística. A negação, a mentira, não se sustentaram.
“Algo parecido acontece dentro da prática clínica, onde pessoas com parafilia – frequentemente sob enorme sofrimento psíquico – não costumam procurar o suporte de profissionais de saúde mental, como o psiquiatra e o psicólogo. Ou muitas vezes, quando acompanhadas por tais profissionais, preferem esconder esse tema principal do sofrimento com medo de não conseguirem sustentar o peso dessa condição. Se você sofre ou conhece alguém com dificuldades parecidas, indique um profissional de saúde mental”.