Visitar casas dedicadas ao expediente da cultura trouxe memórias de uma Fortaleza ainda vivida nas relações da rua. Aquela coisa de espalhar cadeiras na calçada e se perder nas horas de conversa fiada. Porém, um lar comum reserva o rigor da privacidade e o pudor das alcovas. Com histórias e estruturas distintas, Casa Absurda e Carnaúba Cultural ofertam outro tipo de residência. Interessa o aprochego. A escuta. Nesse conjunto de telhas e tijolos a prioridade é disseminar a arte autoral cearense.
Rua das menos movimentadas na Aldeota, a Isac Meyer abriga os sonhos conjuntos dos grupos teatrais Pavilhão da Magnólia e Companhia Prisma de Artes. Inaugurada em novembro de 2018, a Casa Absurda abre as portas para múltiplas ideias e manifestações artísticas. Mesmo sendo cria direta do teatro é território de shows, exposições e lançamentos literários. É mutante ao absorver expectativas e permitir o encontro de público e autores.
Conta com salas de reunião, camarim, cozinha (misto de bar e café), galpão para cenários e um prático teatro montado nos fundos da casa. Facilita ao cotidiano das duas companhias um território de pesquisa, ensaio e montagem de espetáculos. Tudo isso com aquele gosto de "estar à vontade em casa", descreve Nelson Albuquerque, do Grupo Pavilhão da Magnólia.
No lugar, nada dessa coisa formal de recepção e fazer sala com cafezinhos. Os anfitriões preparam a casa como se esperassem um visitante dos mais familiares. A conversa se desenrola em meio à montagem da exposição "La película de Chuy e Caju", de Tiago Fontour. Com curadoria de Bianca Ziegler e Raisa Christina, a mostra começa hoje, às 19h e reúne fotografias capturadas entre os litorais de Fortaleza e Rio de Janeiro. Outra parceria preciosa é o trabalho organizado pela Mercúrio Produções, produtora atenta e minuciosa na prospecção da música autoral de Fortaleza.
Para tempos absurdos
O intuito dos organizadores é que a casa consiga manter uma programação que sustente o prédio. Interessa saber que cena cultural cearense existe. Permitir a circulação. Não é bar, nem centro cultural. É um teto democrático ao encontro e o pensamento de projetos. "Se a casa consegue se pagar é uma vitória. Não temos planos de ser um negócio. Fazemos teatro", arremata Nelson.
"Para tempos absurdos, nada melhor que uma casa absurda", reflete o ator e diretor da Companhia Prisma de Artes, Raimundo Moreira. É assim que ele costuma chamar a plateia para testemunhar as atividades culturais do ambiente.
"Aqui é nossa segunda casa. Respira também muito dos nossos sonhos. Um potencializa o outro. Vai disparando outras coisas dentro desses tempos absurdos. Nos alimentamos do fôlego de cada um. Por mais que não tenha grana, edital, estejam perseguindo a cultura, aqui, meio que nos blindamos disso. Um cuidado que temos é de não institucionalizar a casa. Não somos centro cultural, secretaria de cultura. Não temos essas responsabilidades", diz Nelson.
Delicadezas
Avizinhada ao prédio da Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Carnaúba Cultural funciona em um duplex reconhecido pelo histórico de resistência. O número 164 sediou a Associação 64/68 Anistia e o coletivo Aparecidos Políticos, iniciativas de luta por memória, verdade e justiça para as vítimas da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). Recentemente funcionou como Casa Vândala e há quatro meses abriga o projeto coletivo de uma juventude carente de territórios de criatividade e fruição artística.
A conversa com Diego Fidélis, Mike Dutra e Sapão tem a trilha sonora do disco "Wish You Were Here" (1975), do Pink Floyd. Do núcleo responsável por organizar as agendas do lugar falta Malu Costa. "Ela está em viagem por Belém, mas não para de trabalhar com a casa aqui", detalha Sapão.
Assumir a herança social contida naquelas paredes é algo desafiador e atravessa uma necessidade específica. "Abrir espaço para quem não tem espaço, dar visibilidade para quem não tem", argumenta Mike ao situar a premissa da Carnaúba.
O cronograma de atividades é fruto do diálogo entre artistas e organizadores. Sapão conhece a galera do circo. Integrante das bandas Old Books Room e Alien Wave, Fidélis se liga na turma da música. Mike já é próximo do setor audiovisual.
As parcerias definiram atividades como a sessão "Sonoridades" (com músicos e bandas inéditas) e os cineclubes "Diáspora" e "Pegando Fogo". Em junho aconteceu a exposição "Território Somos Nós", reunindo nove artistas locais. Seguem também rodas de conversa e ciclos formativos que englobam de culinária vegana ao tarô. Chegam junto outras formações coletivas como a Bike Vegan e o Ateliê Casamata. Estão abertos a propostas.
Fidélis revela o quanto a burocracia de acesso a instituições públicas afasta os realizadores. "Estar aqui mediando, chamando os brothers artistas, as minas artistas, sem toda essa burocracia para realizar seu trampo autoral já é uma grande satisfação. Eu mesmo passei e passo pelos impedimentos na cidade das grandes estruturas culturais que não abrem espaço. Realizar isso aqui dá um alívio, uma alegria, apesar de não estarmos nos sustentando ainda. No final das contas você consegue dormir com a cabeça de boas", aponta.
A união, assim, é fundamental nessa jornada. "Ainda não é o ideal. São eventos gratuitos e pagamos para manter a casa e para que a programação aconteça. Gerar para manter. A ideia de coletivos é explorada em Fortaleza. É um caminho possível, sim. No Brasil atual, no qual assistimos a falência de tudo, é bom se pensar nisso", conclui Mike Dutra.