Desde pequena, Bárbara Banida aprendeu que tudo era melhor quando ela estava acompanhada. Nascida em uma família grande da Capital, em meio aos pais, avós, tios e muitos primos, percebeu que era assim que se sentia à vontade – com seus afetos, em uma rede de apoio. Com o passar dos anos, a multiartista e gestora cultural transpôs essas memórias para o fazer artístico – legado que segue vivo por meio da Banida Plataforma, coletivo que busca captar recursos para projetos de artistas cearenses considerados “dissidentes”.
“Tanto a minha mãe quanto as minhas avós são pessoas muito agregadoras, que sempre gostaram desse lance de ‘vamos juntar todo mundo’”, conta a artista, em entrevista ao Verso. “Acho que isso me estimulou desde cedo, a lutar pela coletividade e pensar a arte enquanto um fazer coletivo”, completa.
A escolha do termo “dissidentes” é política: destaca a potência da arte feita por pessoas LGBTQIAP+, indígenas e pessoas com deficiência, entre outros grupos minorizados, com foco especial na produção de artistas trans, explica Bárbara. Seu próprio sobrenome artístico, “Banida”, é resultado dessa subversão de palavras consideradas pejorativas.
Descrita pela idealizadora como “uma tecnologia de gestão”, a Banida Plataforma nasceu durante a pandemia, em 2020 – na época, sob o nome Covil das Banidas – e prosperou com o apoio de ações emergenciais de apoio à cultura, como a Lei Aldir Blanc. Há um ano, o coletivo tornou-se uma associação – fortalecendo a missão de possibilitar que mais artistas consigam acessar os recursos públicos por meio de editais e, assim, profissionalizar suas pesquisas e viver de arte.
A semente do coletivo, porém, foi plantada ao longo de muitos anos – do grupo de teatro escolar que Bárbara integrou na infância, quando, entre um ensaio e outro, começou a desenhar – aos diversos coletivos culturais dos quais participou entre a adolescência e a juventude.
Desde o início da Banida Plataforma, o coletivo já aprovou 85 projetos de artistas cearenses ou residentes no Ceará – 62 deles apenas no ano passado, quando o projeto conseguiu tornar-se uma associação, movimento que possibilita acesso a mais recursos.
A participação nesses grupos foi o que fortaleceu a vontade de Bárbara de transformar o amor pela arte em profissão. Em 2014, ela começou a faculdade de teatro, onde começou a se conectar com uma linguagem que viria a se tornar parte importante de sua produção – a performance. Porém, ao se formar, em 2018, se deparou com um questionamento que se impõe a muitos artistas: como ganhar dinheiro com arte?
“Pensei ‘meu Deus, por que eu fui escolher isso na minha vida?’”, brinca a artista. “Porque na época eu queria ser artista visual, queria ser performer, continuei com o desenho, comecei a pintura e a gravura. A partir disso, comecei a engatar o lado da pesquisa”, explica.
Nos anos seguintes, junto à atuação nas artes, a artista se dedicou a seguir nos estudos para viabilizar o sonho de profissionalizar seu trabalho. Fez um mestrado em artes e três especializações – uma delas em Gestão Cultural Contemporânea, que mostrou a Bárbara um novo mundo, em que era possível realizar não apenas o seu sonho, mas o de muitos outros.
“A gestão é, para mim, dentro dessa teia de trabalho artístico, algo pelo qual eu sou totalmente apaixonada, porque tem isso do coletivo e também porque é uma plataforma para a saúde financeira dos artistas”, conta.
É sempre muito importante quando artistas dissidentes, que estão na contranorma, conseguem acessar espaços de mídia em uma perspectiva de vida, de existência, de criação – porque muitas vezes, a mídia que a gente consegue acessar, enquanto corpos trans, enquanto uma travesti como eu, está ligada a um processo de morte, de violência.”
Tornar possível transformar em trabalho o que muitos encaram como hobby é uma das principais bandeiras da Banida Plataforma, que tem realizado, ao longo dos últimos quatro anos, uma série de exposições, mostras e projetos com foco na dissidência – não apenas representativa, mas também estética.
“É muito importante possibilitar que pessoas historicamente marginalizadas consigam acessar recursos, consigam acessar o direito a fazer arte, o direito à ficção, o direito à criatividade”, destaca Bárbara. “E também sinto que é muito importante que a gente pense uma arte que seja desafiadora em si, no seu processo estético. Porque não são só projetos protagonizados por corpos dissidentes, são projetos que pensam dissidência de linguagem”, afirma.
Atualmente, a associação é formada por Bárbara e mais oito pessoas, entre profissionais das áreas de produção e comunicação. Há ainda 25 artistas parceiros, de diversas cidades do Ceará, que compõem o núcleo de proponentes dos projetos.
“A gente tem um foco muito grande em pensar a arte cearense ou a arte cearense que vai para outros cantos”, pontua, destacando que a plataforma também viabiliza bolsas de apoio para que artistas cearenses produzam obras em outros lugares do mundo.
Apesar de frutífero, o projeto de uma plataforma que viabilize a criação de pessoas LGBTQIAP+ e outros corpos considerados à margem ainda é embrionário, destaca Bárbara, e não é possível atender a todos. Aos poucos, porém, o saber coletivo vai se multiplicando, se retroalimentando, e mais pessoas vão conseguindo ajudar umas às outras – formando, de certo modo, a grande família que Bárbara imaginou desde o início.
“Antes da Banida, a gente tinha um coletivo que era o Não Selecionadas, porque a gente mandava [projeto] pra todo canto e nunca passava. Atualmente, o povo fresca que a gente é a plataforma Inclusa, porque a gente passa em tudo”, brinca Bárbara. “E ainda bem, né? Porque é muito, muito trabalho”, conclui.
Transgressão de gênero como potência artística
Não é incomum que artistas levem um pouco (ou muito) de suas vivências para as obras que criam. Como artista, Bárbara não foge disso. Pelo contrário: comumente aborda o que chama de “transgressão de gênero” em sua arte, seja na pintura, no desenho ou na performance. No entanto, ela conta que o caminho aconteceu de forma inversa. A arte foi a ponte para que ela pudesse elaborar, ao longo dos anos, sua real identidade.
“As possibilidades de pensar disruptividade de gênero, para mim, também nascem na arte. Então, não acho que levo isso para a arte, mas que é uma grande retroalimentação, é um grande diálogo”, conta. Foi por volta dos 20 anos, quando fazia um curso com a figurinista e aderecista cearense Dami Cruz, que a artista começou a se entender como uma pessoa trans.
“Queria usar aquelas roupas que eu desenhava. Aí, comecei a ir em brechós e comprar essas roupas”, lembra. Com o tempo, se entendeu como uma pessoa não-binária – e percebeu que não era uma questão de moda ou performance o que fazia com que se apaixonasse por peças de roupa ditas “femininas”.
“Fui levando isso para os processos de criação e os processos de criação foram trazendo isso para mim. Quando ia fazer uma performance e me via em outra imagem, pensava: ‘essa imagem é muito interessante, eu gosto de ver essa imagem, eu me sinto bem aqui’”, explica.
Além das artes cênicas e do audiovisual, Bárbara explorou a relação com sua feminilidade a partir da arte drag – o nome “Banida”, aliás, nomeava a personagem de quando se montava. “Depois, percebi que não era que eu quisesse ficar me montando o tempo inteiro, é porque eu me identificava a partir daquilo”, rememora, alertando que a relação entre e arte drag e transgeneridade também pode ser “um risco”.
“A drag é uma performance, então ela é muito maquiada, ela é muito parametrada, ela tem peruca etc. E não é isso que é ser uma mulher, nem cis nem trans”, pontua. “Aquilo é feito para ser encanto, e o meu encanto é outro”, completa.
Há pouco mais de um ano, Bárbara entendeu-se travesti – e a compreensão de quem realmente era veio junto de mudanças muitas, inclusive no fazer artístico. Em meio ao reencontro de si, encantou-se por outra linguagem: a escultura.
“Para mim, a escultura é um espaço muito lindo, porque acho que é o primeiro espaço que eu consigo acessar o sublime e o sutil”, afirma. Diferentemente de outras plataformas, Bárbara decidiu explorar, na “nova” linguagem, outras questões que não as de gênero e sexualidade. Afinal, sua arte é múltipla, mutável – e ainda há muito a ser desenvolvido.
Eu não esculpo mulheres trans, eu não esculpo travestis. Eu esculpo criaturas que nascem da minha ficção, e para mim isso é muito gostoso. Gosto muito de fazer a minha arte que é mais ‘panfletária’, que é mais explicitamente ativista, que propõe coisas que são muito nítidas. Mas, na escultura, consigo explorar uma sutileza, um outro lado.”
Rede de apoio entre artistas propõe “envelhecimento criativo”
Idealizadora da Banida Plataforma, Bárbara faz questão de não individualizar as conquistas da produtora: há “parceria em tudo”, afirma. Os planos para o futuro visam, portanto, permanecer em coletivo – na arte e na presença física.
Pensando nisso, a Banida deve abrir sua primeira sede, intitulada Lugar Incomum, no início do ano que vem. “A ideia do Lugar Incomum é ser um ateliê coletivo, para que a gente possa colocar as exposições para rotacionar, e para ser um lugar em que as pessoas possam fruir e se reunir”, conta.
“A gente também tem um sonho muito forte: criar um sítio, que a gente quer chamar de Sítio Relicário, na qual a gente tenha um ateliê coletivo gigante, piscina, cada um possa a construir sua casa, ou você possa passar um tempo fazendo residência. Isso é um plano para daqui a alguns anos”, completa. Para além do processo artístico, os espaços físicos vindouros devem se tornar um lugar de acolhimento a longo prazo para os integrantes da Banida Plataforma.
“Eu quero ter um envelhecimento criativo, em que eu possa envelhecer e criar. E, às vezes, isso é muito difícil para os artistas, porque porque muitos não têm nem como pagar o aluguel do próximo mês, quanto mais pensar em duas, três, quatro, cinco décadas. A Banida chega para dizer ‘vamos envelhecer, vamos nos manter vivas, sãs e bem juntas’, conclui.
Para conhecer: Mostra Proibida
Atualmente, a Banida Plataforma desenvolve uma série de projetos em Fortaleza, desde atividades em escolas públicas a exposições em equipamentos culturais. Um dos destaques é a Mostra Proibida, que chega à sua segunda edição em 2024 com o tema "Corpo Memória Viva" e cinco exposições, além de performances pela Cidade.
Para consultar a programação e acompanhar as ações, siga a Banida Plataforma nas redes sociais: @banidaplataforma.