O alpendre na casa dos avós sempre constava na dobra da memória de Arievaldo Vianna como sinônimo de aconchego. Ali, em pleno sertão cearense, não faltavam histórias, causos à boca miúda. Lamparina acesa, o menino ouvia tudo atentamente: narrativas de lobisomens, alma penada, botijas e até de discos voadores. Era tudo real, palpável. Natural. Na ausência das diversões da cidade grande, aquele era o cotidiano, repleto também de vaquejadas, cantorias, leilões e reisados, para alegria geral.
Folhetos de cordel igualmente compunham essa rotina de contatos com a cultura. E foi embalado exatamente por tal atmosfera que o artista cresceu e deu passos vigorosos num sem número de ofícios. Arievaldo Vianna cumpriu, com singular louvor, os expedientes de cordelista, poeta popular, radialista, ilustrador e publicitário. E, para além de todo e qualquer registro profissional, tinha a simplicidade e candura dos gigantes.
“Era alegre, criativo, adorava música. Aliás, a música era como um calmante natural para ele, que pesquisava tudo sobre esse universo, apesar de não saber usar nenhum instrumento”, detalha Juliana Araújo, viúva do cordelista. “Ari tinha o sonho de aprender a tocar sanfona, sendo admirador do Gonzagão e também de Jackson do Pandeiro, além de Música Clássica e MPB”.
Foi por meio de Juliana que as primeiras notícias sobre o falecimento de Arievaldo correram pelo mundo. Era sábado, último dia 30 de maio, dois dias depois de ele dar entrada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital em Fortaleza, quando ela anunciou nas redes sociais a partida do artista, acometido de uma severa infecção bacteriana.
“Nos conhecemos em 2003, na cidade de Canindé, e logo iniciamos um relacionamento. Arievaldo deixou um rico legado de luta, aprendizagem e esforço. A vida dele nunca foi fácil, sempre teve que lutar muito para viver – ou sobreviver, como sempre dizia. Os anos a seu lado foram leves, rápidos, especiais. Era um homem cheio de travessuras e deixou vários trabalhos para que possamos aproveitar de forma prazerosa”.
Vasta produção
De fato, o poeta desenvolveu inúmeras produções em que prevaleceu o gosto por exaltar a cultura cearense, tipos humanos e geográficos. No total, foram 33 obras e mais de 150 folhetos de cordel publicados, versando sobre diversidade de temáticas.
Em “No Tempo da Lamparina”, por exemplo, passeia pela infância no interior; por sua vez, em “O Protesto de João Grilo contra a fome mundial”, faz um chamado aos governantes, acentuando a inércia da sociedade e a hipocrisia dos povos em geral.
Pelo fato de Arievaldo manter a mente sempre inquieta, Juliana conta que há muitos materiais inéditos sob a pena dele, a exemplo da obra “A mala da cobra”, a qual ela estuda uma maneira de lançar por editoras interessadas.
“Tem também o projeto Acorda Cordel na Sala de Aula, que não é inédito, mas não está nas mãos de nenhuma editora. E ficou o que seria o terceiro volume de memórias, intitulado ‘Mukila’, obra não terminada por ele, bem como ‘Histórias que os antigos me contavam’, que abraça contos populares da nossa região e interior do Ceará”, explica Juliana.
Uma ficção em cordel que descrevia o encontro entre Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Euclides da Cunha também ficou pelo caminho. Arievaldo escrevia a obra com a médica e cordelista Paola Tôrres. Eles planejavam lançá-la na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano.
“O livro estava apenas no início. Nós começamos a escrever o cenário, porque pensamos que depois ele poderia ser encenado. Ia ficar bacana. Então acho que o Klévisson queira continuar o trabalho e, de repente, nós escolhemos um outro poeta para falar como se fosse o Arievaldo lá do céu. Acho que ele ia gostar disso”, detalha.
Ao mesmo tempo, dá ênfase às rimas primorosas criadas pelo amigo. “Existem bons poetas, com técnica esmerada, textos bem construídos; na poética do Arievaldo, no entanto, além disso tudo, havia aquele toque único. O caminho poético, que direciona o nosso olhar e o nosso coração para o simples inimaginado”.
Alcance
Irmão do poeta, o também cordelista Klévisson Viana endossa o panorama ao informar que Arievaldo também estava trabalhando numa biografia do poeta João Melchíades Ferreira (um dos autores de ‘O romance do Pavão Misterioso’); e que as crônicas escritas nos blogs que ele mantinha daria para integrar três livros ou mais livros.
“Agora, o filho mais velho, Daniel, juntamente com a viúva, Juliana, estão fazendo um levantamento desse acervo. A Editora Nova Alexandria manifestou interesse em publicar parte desse material”, afirma Klévisson.
De sua parte, além da saudade, fica a constante reverência por ter convivido com o artista de modo tão próximo. Klévisson, não à toa, escreveu um cordel em homenagem ao irmão, intitulado “O encantamento de Arievaldo Vianna e sua chegada ao Céu”. O folheto, publicado pela editora que mantém, a Tupynanquim, já está sendo impresso, com capa de Jô Oliveira.
“Ari era único e insubstituível, assim como Patativa do Assaré, Alberto Porfírio, João Firmino Cabral... Todos os bons são únicos! Apesar de ele ser o mais velho, eu comecei a publicar meus livros antes dele; mesmo assim, ele sempre foi uma das minhas principais referências. A opinião dele era muito importante pra mim”, conta Klévisson, que compartilhava com o primogênito tantas afinidades. A parceria resultou em mais de 30 trabalhos assinados juntos, muitos deles vencedores de prêmios e com grande alcance.
“O principal legado que ele deixa é de amizade, amor e respeito ao próximo, de empatia pelos que sofrem, e seu bom humor. Seu desejo imensurável de fazer as pessoas felizes, seu amor pela cultura e sua obra gigantesca. Arievaldo era uma referência para mim e pra toda a minha família”.
Contribuições
O pesquisador Gilmar de Carvalho situa que Arievaldo Vianna conquistou um lugar reservado no cordel a partir de uma memorialística do sertão.
“A contribuição dele para a literatura cearense tem sua força no cordel, mas vai muito além. Poeta de cordel que deve ser respeitado, nos deixa um legado: foi uma voz sertaneja no contexto urbano. Era o menino da Fazenda Ouro Preto, em Quixeramobim, que escrevia folhetos e fazia design gráfico. A nostalgia dele era bem trabalhada e chegava aos mais de cem folhetos que deixou”, sublinha.
Também ressalta o texto denso e o mergulho que o poeta fez a na vida do responsável pelo cânon do cordel, na biografia “Leandro Gomes de Barros, o mestre da literatura de cordel – Vida e obra”, publicada em 2014 e com texto de apresentação assinado por Gilmar. “Arievaldo mostrou seu fôlego. Viajou, entrou em contato com a família, coletou documentos. Não fez uma biografia de gabinete.
É algo, inclusive, que diz respeito ao próprio ofício dos cordelistas. São artistas que costumam pesquisar muito, sendo atentos não apenas aos temas (estudam sempre sobre assuntos pertinentes à sua poética) como à história da arte que fazem.
“Arievaldo não fazia aquele gênero chato que lê a última estrofe que escreveu na expectativa do aplauso. Ele sabia o que era cordel, desde pequeno. Era muito impregnado pelo universo mágico do lugar onde nasceu, mas não rejeitava as vivências da cidade. Seus cordéis tinham uma acentuada ‘pegada’ política”, completa Gilmar de Carvalho, destacando ainda que o artista deixa seu legado e vai ser sempre uma referência de um tempo em que o cordel deu a volta por cima.
“Fortaleza conta com quatro folhetarias (Tupynanquim, Rouxinol, Edições, Folhetaria Padre Cícero e a Flor da Serra) e o cordel é vivo, pulsante, com marcas autorais fortes e mercado (pasmem). Vale saber que o cordel se espalhou pelo Ceará graças às gráficas rápidas, aos celulares, e temos até grupos de WhatsApp de poesia, como ‘Um pouco de mim’”.
Apego
O cordelista Rouxinol do Rinaré escreveu dois cordéis em parceria com Arievaldo, entre eles “O casamento do morcego com a catita”, publicado em 2007 (Tupynanquim Editora) e “Deixe o homem trabalhar”, referência a um jargão corrente à época do mandato do ex-presidente Lula. “A gente fez em guardanapos, pois estávamos num restaurante”, recorda, com carinho.
Tendo criado estrofes em homenagem ao amigo no dia do falecimento dele, o artista afirma que a trajetória de Arievaldo parece até repetir a história dos poetas românticos: partir cedo, mas deixar vasta obra. Além disso, evoca a história preferida criada por Ari.
“Entre seus mais de 100 romances de cordel gostava muito de ‘O marco dos três irmãos’, um cordel futurista que fala de um rochedo encantado lá da sua região, porque escreveu a partir de lembranças de histórias que ouvia na infância”, destaca.
Ao mesmo tempo, evidencia o sentimento de continuidade nos trabalhos de Arievaldo. “Mesmo com sua partida, a arte cearense continua rica pelo legado que ele deixou e porque, com certeza, sua família e nós, amigos, daremos continuidade à sua luta!”.