Cidadã do mundo, filha daqui. Romancista, poeta, cronista e daquelas pessoas atentas às coisas miúdas da vida. É certeiro: à menção do nome de Ana Miranda, atributos como os enumerados pululam, ganham destaque. A escritora cearense não é apenas uma das figuras mais respeitadas no meio literário local, nacional e internacional, como também presença afetuosa, carregando no semblante uma trajetória de total dedicação às letras e ao saber resguardado em livros e registros orais.
A imersão nesse universo vulcânico, com sempre tantas histórias a contar, se iniciou ainda na infância - apesar da autora acreditar que o desejo de estar entre palavras vem de muito antes da chegada ao mundo. "Acho que é herança da sensibilidade de meus pais", arrisca. "A minha mãe, por exemplo, quando criança, lá no sertão da Paraíba, furtava os livros do irmão para ler escondida num caixote de madeira, à luz de um lampião, e no final era apanhada, pois ficava com o rosto coberto de fuligem".
De certa forma, foram esses pequenos detalhes os responsáveis por fazer com que várias agremiações de fomento à literatura pudessem se voltar para a trajetória artística de Ana, de modo a reverenciá-la pelo legado que construiu. Entre elas, constam láureas como o Prêmio Jabuti (1990), Prêmio da Academia Brasileira de Letras (2003), Troféu Sereia de Ouro (2009) e o Green Prize of The Americas (2010).
Nesta quinta-feira (8), é a vez de a Universidade Federal do Ceará (UFC) empreender homenagem à literata, entregando em suas mãos o título de Doutora Honoris Causa. A solenidade acontecerá a partir das 19h, no auditório da Reitoria, e deve reunir alguns dos principais nomes da cultura cearense em um grande encontro de valorização ao saber.
Aprovada pelo Conselho Universitário (Consuni), a comenda é fruto de indicação do curso de Letras da UFC, por meio dos departamentos de Letras Estrangeiras, Letras Vernáculas e Literatura. Foram os professores Inês Cardoso, Tércia Montenegro e Cid Ottoni Bylaardt que sinalizaram o merecimento da escritora ao título concedido hoje.
"Inês e eu pensamos na ideia de homenageá-la há aproximadamente cinco anos. Somos amigas e sempre conversamos sobre os livros da Ana, encantadas com a qualidade do que líamos. E, como a proposta do título de Doutor Honoris Causa surge do espaço acadêmico, percebemos que seria bastante possível o reconhecimento", explica Tércia, outra figura de expressivo renome e influência no meio literário.
Recepção
Ana Miranda afirma que recebeu a notícia da conquista do mérito com emoção, dimensionando a relevância. "Foi uma das melhores de minha vida. É um título que não é apenas um reconhecimento acadêmico para uma escritora, mas tem um sentido mais amplo, de aceitação e reconhecimento de uma obra literária que recria vozes femininas e trabalha com a memória do País".
"E isso é maravilhoso numa nação que preserva tão pouco a sua história", sublinha. "Ao mesmo tempo, receber um título desses em minha natal tem um valor a mais", completa. Apesar de ter nascido em Fortaleza, a escritora passou temporadas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Para a Capital do Ceará, voltou há quase doze anos e, segundo ela, "foi a melhor escolha que pude fazer como pessoa", destacando que a vida cearense lhe agrada, honra e enobrece. Entre as características que elenca para argumentar a opinião, estão o clima, os coqueirais, o tom de voz e a meiguice das pessoas, apesar da contundente violência da urbe.
"Minha obra tem se beneficiado de meu contato com as minhas origens. Eu sempre desejei isso, e consegui. Estou impregnada da literatura e da atmosfera cearense. Porém, o que mais me inspira aqui é a natureza, e sinto que temos uma grande luta pela preservação dela", avalia. Esse componente natural, inclusive, é apenas uma das várias temáticas que a escritora já se debruçou para contar causos e histórias.
Também aviva-se na prosa de Ana conteúdos históricos, sociais e mesmo políticos. Ela é uma das poucas artistas da palavra no Brasil que trabalham com o romance histórico, empreendendo grande esforço para captar a beleza e força da língua portuguesa e do Ceará. Não à toa, tenta sempre trabalhar com rendeiras, bordadeiras e pescadores, personagens-símbolo de nossa terra.
Uma atenção que já se desdobra em 30 livros publicados, entre romances, novelas, poesias e antologias de contos e crônicas, e tem rendido incursões pelos Estados Unidos - foi escritora visitante em universidades como Stanford e Yale - e Roma, onde representou o Brasil perante a União Latina.
Projetos
Diante de uma prolífica produção, Ana Miranda comenta ainda que, embora a poesia seja o gênero que mais lhe fascina, o seu preferido como expressão é o romance. "Sinto que sou uma romancista. Combina comigo, gosto de fantasia, fabulação, realidade e sonho. O romance é um gênero extremamente feminino, detalhista, de curiosidade, de aprendizagem. Gostaria de ter escrito apenas romances, mas sou prisioneira da minha versatilidade, infelizmente".
Já quando indagada sobre os projetos desenvolvidos no momento, ela menciona que está trabalhando na curadoria da Bienal Internacional do Livro do Ceará de 2019, juntamente com os professores Inês Cardoso e Carlos Vasconcelos e a equipe da Secretaria da Cultura do Estado (Secult-CE).
Na seara da criação literária, os passos dados, pelo que conta, também já se encontram encaminhados. "Estou escrevendo um novo romance, mas disso eu nunca falo, pois o livro se rebela, briga comigo e desaparece", brinca.
Serviço
Entrega do título de Doutora Honoris Causa à Ana Miranda. Nesta quinta-feira (8), às 19h, no auditório da Reitoria (Av. da Universidade, 2853, Benfica). Contato: (85) 3366-7608
Saiba Mais
Processo de escrita
Cada livro de Ana Miranda tem um procedimento diferente de criação. Porém, há algo que se repete, como o trabalho de arqueologia de vocábulos. "Estou sempre em busca de palavras fascinantes, novas, esquecidas, empoeiradas, belas, fortes", explica. Ela também realça que as temáticas lhe capturam, muito mais do que ela as escolhe. "Foram inúmeras as vezes em que decidi escrever um livro, mas escrevi outro".