Com normas próprias e decisões rápidas, os "juízes" do "tribunal do crime" determinam quem vive e quem morre. Basta desacatar, desapontar ou desagradar para que uma vida seja colocada em votação. No Ceará, há alguns anos temos registros de casos dessa forma de punição imposta por criminosos, mas um caso em que o suspeito de estupro que teve a morte decretada pela liderança de uma facção criminosa paulista escapou tem relatos que destoam de outros episódios ocorridos aqui no Ceará.
Tudo teve início no dia 6 do mês dezembro de 2018, em Fortaleza. Um homem suspeito de estupro contra uma adolescente é capturado por integrantes de uma facção e levado a um matagal no bairro Parque São José. Ali, ele tem a morte "decretada" por ter cometido ato que vai contra às regras da organização criminosa.
Em meio às conversas em um grupo no Whatsapp formado por membros da facção, o grupo a favor da execução comenta que o suspeito permanece vivo, porque Francisco Helder Dutra Melo, conhecido como 'Onotório', impede a morte na área a qual comanda. É quando Paulo Diego da Silva Araújo, o 'Dino', hoje preso em São Paulo, diz que o decreto precisa ser concluído.
O impasse perdura durante horas enquanto o suspeito de estupro é mantido refém no matagal. Além de Paulo Diego, James Machado Cordeiro, Fábio Eugênio Lima Rodrigues e Francisco Márcio Teixeira Perdigão se mostram a favor da morte "porque já foi dado o ok pelas lideranças para o decreto".
"SE ELE VIVER VAI ENTREGAR TODO MUNDO"
Os faccionados continuam a conversa e alegam que o "comandante" de determinada área não pode impedir o cumprimento da disciplina do "comando" como um todo. Eles também passam a temer que se o refém continue vivo possa denunciá-los. Mesmo com a ordem, os executores temem concluir o homicídio e sofrer represálias de 'Onotório'.
A última informação presentes nos documentos aos quais a reportagem teve acesso é de que o homem teria sobrevivido após ser espancado. Toda a investigação da Polícia Civil do Ceará é parte de um relatório sigiloso, que trata sobre líderes da facção em questão e obtido com exclusividade pelo Diário do Nordeste.
A história contada é reflexo da influência das facções criminosas no Ceará nos últimos anos. De acordo com o promotor de Justiça Eloilson Augusto da Silva Landim, membro do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público Estadual, é preciso compreender que o fenômeno do 'Tribunal do Crime' envolve a sociedade em um contexto de regras.
"Nos dois últimos anos houve uma explosão de casos assim. Eles estão se utilizando desse Tribunal do Crime para se fortalecer. Disputando mercado com armas e gente e controlando as comunidades. O Tribunal do Crime nada é além do que a aplicação dessas regras do ponto de vista punitivo daqueles que violam as normas que foram estabelecidas. A diferença é a ilicitude dessas regras, dos objetivos para o cumprimento".
A Justiça autorizou extração de dados no celular encontrado com James Machado e o Departamento de Inteligência Policial (DIP) constatou uma lista de quase 240 nomes de membros da facção, sendo 46 lideranças. Lá foram localizadas conversas que tratavam sobre o 'Tribunal do Crime' no Ceará e revelavam que após o episódio de desentendimento interno foi preciso que o bando reforçasse mudanças no estatuto interno.
A reportagem questionou a Polícia Civil do Ceará sobre a situação dos participantes deste episódio do 'Tribunal do Crime' a fim de saber se eles foram investigados e indiciados por esse crime. Até a publicação desta matéria, o órgão não havia enviado resposta.
LEIS INTERNAS
Dias depois da decisão tomada pelo 'Tribunal do Crime' não ter sido cumprida no Ceará, a facção oriunda de São Paulo fundada em 1993 renovou a lista de regras internas. 18 normas regem dia a dia e decisões dos faccionados, dentre elas a que "o comando não admite entre seus integrantes estupradores, homossexualismo, pedofilia, caguetagem, mentira, covardia, opressor, chantagens, extorsões, inveja, calúnia e outros atos que ferem a ética do crime".
VEJA ALGUMAS REGRAS NO NOVO ESTATUTO:
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Lutar sempre pela paz, justiça e liberdade, igualdade e união visando o crescimento da nossa organização respeitando sempre a ética do crime
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Aquele integrante que for para a rua tem obrigação de manter o contato com a sintonia da quebrada ou da quebrada que o mesmo estiver, está sempre à disposição do comando a organização necessita do empenho e união de todos os seus integrantes deixando claro que não somos sócios de clube e sim integrantes de uma organização criminosa
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É necessário e dever de todos os integrantes colaborarem e participar do progresso do comando seja ele qual for pois os resultados desse trabalho são empregados em pagamentos de despesas com defensores (advogados) ajuda para as trancas, cesta básica, ajuda financeira para familiares de finados que perderam a vida em prol da nossa causa, transporte para as cadeiras carentes, auxílios para doentes com custo de remédio cirurgias e atendimentos médicos particulares, principalmente na estrutura da luta contra os inimigos.
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Todos integrantes deve ter certeza absoluta que quer fazer parte do comando pois aquele que usufruir dos benefícios que o comando conquistou e pedir para sair pelo fato de sua liberdade está próxima ou até mesmo daquele que sair para a rua e demonstrar desinteresse por nossa causa serão avaliados e se constatado que o mesmo agiu de oportunismo o mesmo poderá ser visto como traidor tendo uma atitude covarde e o preço da traição é a morte
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Deixamos claro que a sintonia final é uma fase de hierarquia do comando composta por integrantes que já estão alguns anos no comando ou o integrante que tenha sido indicado e aprovado pelos outros irmãos que fazem parte da sintonia final, no comando existe várias sintonias, mas a final é a última instância um dos principais objetivos da sintonia final é lutar pelos nossos ideais e pelo nosso crescimento de nossa organização
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O comando não tem limite territorial, todos os integrantes que forem batizados não componentes independentes da cidade, estando ou não no país, devem seguir a nossa disciplina, hierarquia e estatuto
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É inadmissível usar o comando para obter benefícios próprios se algum integrante vier superfaturar algo para ganhar dinheiro em cima do comando agindo com esperteza em benefício próprio será excluído e decretado
CRITÉRIO DE CONVENCIMENTO
Para o promotor do Gaeco, é preciso repensar as formas de políticas públicas de combate ao crime organizado já que existe um sentimento de ruptura de pacto social: "Eles seguem estatuto com critérios de convencimento. Consideram traição entregar alguém para a Polícia, vender a droga e não repassar pagamento... Determinados atos causam tanto clamor, tanta revolta, que até mesmo o criminoso assim considerado pelo Estado, não aceita e imediatamente determina um julgamento para punição exemplar, destaca.
Eloilson Augusto acrescenta que a existência de um 'Tribunal de Exceção' por si só já é uma violação. "Se um determinado grupo de indivíduos chega a um consenso de punir com a morte, isso é esquecer que existe um Estado de Direito e aplicam o estado de exceção", disse o promotor.