Vítimas, advogados e testemunhas. No último dia 26 de julho, 10 mulheres estavam no Fórum de Juazeiro do Norte, Interior do Ceará, prontas para participarem da audiência da ação cível com pedido de indenização a partir dos crimes sexuais cometidos por um médico. Foi um ano e meio de espera até que o juiz as chamassem para ser ouvidas. Em poucas horas, a sessão se "tornou um circo de horrores".
É assim que define o advogado das vítimas sobre o que aconteceu na sessão. Das 9h às 13h, as mulheres estiveram na presença do juiz Francisco José Mazza Siqueira. O que elas não esperavam era, naquele momento de 'vulnerabilidade', ser revitimizadas, desta vez, segundo denunciantes, pelo próprio magistrado.
O Diário do Nordeste teve acesso com exclusividade aos vídeos da audiência.
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Em determinado momento da sessão, uma das depoentes ouviu o magistrado dizer: "tinha aluna que chegava se esfregando em mim...esfregando a vagina em mim… aqui não tem criança, aqui é todo mundo adulto... e dizia professor não sei o que.. E eu dizia: minha filha é o seguinte: quando eu deixar de ser seu professor, você faça isso aqui comigo".
Naquele momento, quando Francisco José relembrou um caso que ele afirma ter vivido enquanto professor universitário, colocou à prova o que diziam ali vítimas e testemunhas de acusação, depondo contra o médico Cícero Valdizébio Pereira Agra, acusado de praticar atos libidinosos com as pacientes na região do Cariri.
O Tribunal de Justiça se posicionou por nota dizendo que: “não tomou ciência, até o momento, de qualquer reclamação disciplinar para apurar os fatos narrados. Todas as denúncias ou reclamações relacionadas à atuação de juízes, submetidas à Corregedoria-Geral da Justiça, são devidamente apuradas”.
Já a Associação Cearense de Magistrados (ACM) afirma “que repudia quaisquer ações misóginas ou condescendentes com assédio sexual e/ou moral de gênero” e “considera, contudo, não ser prudente, nem oportuno, desde logo, imputar responsabilidade ao magistrado, sem análise de todo o contexto da situação apontada e antes mesmo de uma eventual apuração de sua conduta funcional pelos órgãos competentes, especialmente em razão da absoluta excepcionalidade do que restou noticiado”.
A reportagem também tentou contato com o magistrado por meio da vara pela qual responde, mas não obteve sem sucesso.
'ME SENTI CONSTRANGIDA'
Nos vídeos, o juiz tenta apaziguar a fala dizendo logo em seguida que tem "o maior respeito a vocês mulheres, até porque sou filho de uma mulher, minha mãe é uma guerreira". Mas não demora até que ele traga outro relato da sua vida pessoal, desta vez comentando sobre estudantes, que fizeram seleção de estágio para atuar na Vara criminal.
"Quem acha que é mulher é tudo boazinha, tão tudo enganado, viu. Eita bicho de mão pesada, bicho da língua grande e que chuta nas partes baixas, são as mulheres. Tô dizendo isso no sentido que vocês são fortes" (sic)
Por se tratar de audiência de ação cível, não havia representante do Ministério Público do Ceará (MPCE) na sessão
Uma das testemunhas da acusação disse à reportagem do Diário do Nordeste que, "na hora, não percebeu que o juiz era machista", mas se "sentiu constrangida a todo momento".
"Na hora do meu depoimento eu achei ele egocêntrico, mas não percebi diretamente que ele era machista. Fui para casa e depois eu soube do que aconteceu. É um caso muito delicado, me senti constrangida com ele sendo egocêntrico e por ser colocada de frente com o médico", conta a mulher, de identidade preservada.
'DEPOENTES QUISERAM DESISTIR DA AÇÃO'
Aécio Mota, advogado das vítimas, diz que a audiência "mais pareceu um circo de horrores". A acusação acredita que o "juiz desdenhou do comportamento das mulheres" e não se espantou quando terminada a sessão, "depoentes quiseram desistir da ação".
"Na audiência, em vários momentos o juiz menosprezou o comportamento das mulheres nos dias atuais, insinuando que as mulheres atualmente também são culpadas pelo comportamento de homens abusivos. Esbanjou machismo e desdenhando das vítimas de violências sexuais. O que se mostrou em audiência foi um total desrespeito e desconsideração de todo o trauma causado pelas violências que aquelas mulheres já tinham sofrido, principalmente por um Juiz, que deveria se referir de maneira respeitosa àqueles presentes na audiência"
A reportagem conversou com duas das três das vítimas dos crimes sexuais por parte do médico. Uma delas não foi à audiência porque passou mal, instantes antes da sessão, “já nervosa por ter que ver o acusado”.
Quando soube do que havia acontecido na audiência, ela e a mãe dela disseram já não acreditar mais em uma condenação do denunciado.
Médico acusado, vítimas e depoentes ficaram em uma mesma sala durante a sessão
A outra vítima, que esteve na audiência, falou não conseguir conceder entrevista neste momento: “isso tudo mexe muito comigo e com o meu emocional, não consigo dormir direito, pensar direito”.
NOTA NA ÍNTEGRA DO ADVOGADO DAS VÍTIMAS:
"Informamos que já estamos tomando as providências para acionar a OAB e o juiz em questão, representando o juiz junto aos órgãos competentes, pois entendemos que houve uma violação de prerrogativas e desrespeito com as partes e advogados. Pela legislação, e códigos de ética da magistratura, os juízes devem garantir a dignidade da justiça, tratar as partes com respeito e de forma igualitária.
Quando o Juiz faz comentários acerca do comportamento das mulheres na audiência, está fazendo um juízo de valor em desfavor da vítima. Colocando o comportamento das mulheres como uma justificativa para agressões e abusos, de maneira desumana. Colocando a vítima como culpada, ou seja, a vítima passa a ocupar o banco dos réus.
As falas do juiz demonstram uma total inadequação do seu dever de parcialidade. Iremos buscar a reparação desse comportamento junto aos órgãos competentes, buscando coibir a violência de gênero ocorrida em audiência por autoridades que agiam, ou deveriam ter agido, em nome do Estado. Há no discurso do juiz uma clara e inaceitável naturalização da violência de gênero contra uma vítima de abuso sexual praticada por um médico. Outra conduta parcial por ele praticada que iremos buscar a reparação é o silenciamento dos advogados da vítima com o indeferimento de todos os seus requerimentos, o que configura claro óbice ao exercício da advocacia.”
A ACM diz ainda esperar “que o episódio seja devidamente esclarecido, em resguardo aos interesses das pessoas envolvidas e da própria Instituição da qual faz parte o magistrado”.
A Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará (OAB-CE) se posicionou por nota afirmando não ter tomado conhecimento do caso, “em razão de processos dessa natureza tramitarem sob sigilo de justiça, por imposição legal”.
“Para a presidenta da Comissão da Mulher Advogada e vice-presidenta da OAB Ceará, Christiane Leitão, na forma do artigo 400-A, do Código de Processo Penal, ao magistrado reitor do processo compete zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sobretudo em se tratando de crimes contra a dignidade sexual. Mais ainda, a depender do caso, pode-se estar diante de caso crime de violência institucional, completou a Ordem.