Quanto se paga por uma morte? Durante décadas, o Estado do Ceará esteve marcado pela pistolagem. Aqueles que se diziam ‘homens de honra’ na maioria das vezes sequer recebiam recompensas financeiras. Se tratava de vingança, matar primeiro antes de ser morto.
O pistoleiro é também conhecido como assassino de aluguel, "braço armado" e "autor material" dos crimes de mando, de encomenda.
Historicamente, a disputa pelo poder culmina em execuções. O instinto de sobrevivência aflora naqueles com revólveres ou pistolas em punho que, sem medo das consequências, escolhem seus alvos a sangue frio.
Dezenas de homicidas tiveram seus nomes estampados nos noticiários. Muitos morreram, alguns aguardam sentença na Justiça, enquanto outros fogem da Polícia há anos. Dentre eles, grupos emblemáticos que atuavam no Interior do Estado e os grupos de extermínio encabeçados por policiais.
A região de Jaguaretama é ‘símbolo do matar e morrer’. Ganhou espaço nas manchetes como ‘terra do medo’, onde a população foi feita refém dos criminosos divididos entre ´Filhos de Senhorzinho Diógenes´ e ‘Filhos de Antônio de Isaías’.
O cerco se fechou contra os pistoleiros quando uma parente do vice-governador foi assassinada, em 2007. A empresária Ana Mônica Barreto morreu a 200 metros do Fórum de Jaguaretama, às 8h. Ali restava nítido que os criminosos não temiam represálias.
Mesmo após as mortes dos patriarcas, filhos e agregados herdaram a missão de matar. O horror se perpetuou durante anos, com auge de 1995 a 2010. Políticos e empresários integram a lista dos assassinatos. A cada semana era um novo crime, um a menos de cada lado e mais uma vítima do ‘novo cangaço’.
Em estudos, a doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Peregrina Capelo, destaca que a “pistolagem é uma das práticas homicidas mais arcaicas da história do Brasil e especificamente do Nordeste brasileiro”.
Nas conversas com autoridades que atuavam em Jaguaretama durante o auge da pistolagem, se percebe que os homens eram criados para atirar. Manoel Diógenes, o ‘Senhorzinho Diógenes’ teria chegado a espalhar pela cidade que “nenhum dos seus filhos passaria dos 30 anos, porque não tinham estudo. Mas todos estavam bem criados para atirar”.
CÃO LATIU E PISTOLEIRO QUIS SE VINGAR
Antes que a Polícia ‘botasse as mãos’ nos homicidas, os adversários de encontravam e protagonizavam duelos. Em 2005, Luciano Saraiva Diógenes foi morto a tiros de escopeta, enquanto dormia.
Três anos depois, a vingança. Lucivando Saraiva Diógenes, o ‘Gordo’, matou Francisco de Assis Peixoto, o ‘Assis Cariri’, “simplesmente pelo fato de um cão latir sempre que ‘Gordo’ passava em frente à casa da vítima”.
‘Gordo’ e os irmãos ficaram conhecidos como ‘Filhos de Senhorzinho Diógenes’, em memória do pai, executado naquela mesma cidade.
No ano de 2009, outra morte entre eles. José Iran Moura Gomes, filho do também pistoleiro "Antônio de Isaías" e Antônio Danísio Pinheiro Moura estavam em uma estrada carroçável, limite da Comarca de Jaguaretama.
Eles avistaram Antônio Robson Gomes da Silva, o 'Robinho Pimenta'. Robinho não acreditou estar em perigo, porque conhecia a dupla. Conforme testemunhas, ele não esperava que naquele instante fosse assassinado com três tiros de arma de fogo.
Na delegacia, quando foram mostradas fotos de pistoleiros, um parente da vítima reconheceu os dois suspeitos.
“A vítima também era parte integrante da complicada engrenagem de bandos de pistolagem instalados na região, cujo desmantelo teve início no ano de 2008, com a morte e prisão dos principais integrantes do bando de 'Filhos de Senhorzinho Diógenes', bando rival. Como eles se conheciam, a vítima depositava confiança nos acusados”, conforme denúncia do MP.
O motivo do crime ainda não ficou bem esclarecido, mas diante da extensa ficha criminal da vítima, as autoridades acreditam estar ligado a uma encomenda de terceiro. Já naquela época, Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) reconheceu a existência do bando e a elevada periculosidade dos membros.
No próximo mês de julho, um pistoleiro deve ir a julgamento. Edilano da Silva Nogueira, acusado pela morte de Aldimir Moura Saldanha, participará de videoconferência, enquanto detido na Penitenciária de Mirandópolis, Interior de São Paulo.
Consta nos autos que o crime aconteceu na companhia de Genilson Torquato Rocha. Eles foram até um bar, onde a vítima estava sentada. Edilano desceu da moto, encostou a arma na cabeça da vítima. A vítima correu, mas foi atingida diversas vezes.
QUEM PARTICIPAVA DE CADA GRUPO
'Os Diógenes’
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Lucivando Saraiva Diógenes;
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Ricardo Sérgio Saraiva Diógenes;
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Luís Sérgio Saraiva Diógenes;
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Regionilson Saraiva Diógenes, o ´Melado´;
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Everton Diógenes, o ´Mucuim´;
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Francisco Delano Diógenes;
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Genilson Torquato Rocha;
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Edilano da Silva Nogueira;
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Josivan Reinaldo Monte;
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Antônio Márcio Moura Granja, o ´Márcio do Condado´;
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Inácio de Morais Paulo, o ´Cego de Solonópole´;
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Manoel Carneiro Neto, o ´Manuel Preto´;
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Carlos Eduardo Lima Nogueira;
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Luisvânio Oliveira Diógenes;
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Luciano Saraiva Diógenes;
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Regionildo Saraiva Diógenes;
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Antônio Charles Barreto, o ´Charlim´;
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Fernando Antônio Ueslei Araújo Souza;
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José dos Santos Vieira Júnior;
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Gilderlan Soares Granja.
Filhos de Isaías
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Francisco Antônio Moura, o ´Antônio de Isaías´;
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José Iran Moura Gomes, o ´Melado´;
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Danísio Pinheiro Moura, o ´Liliu´ (filho de Antônio de Isaías);
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Marcos Aurélio Pinheiro Moura
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José Geovagner Oliveira
CONFLITOS INTERPESSOAIS
O sociólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), César Barreira, destaca que na esfera dos conflitos interpessoais, os crimes de pistolagem mantêm um misto de anonimato e transparência, “processando-se em um clima de denúncias e boatos, tendo como dado impulsionador o fato de vítima e mandante poderem fazer parte da mesma rede de relações pessoais e de vizinhança”.
O estudioso pontua que o anonimato é mantido pela forma como ocorre o assassinato, se valendo do efeito surpresa, de uma tocaia.: “Os pistoleiros aparecem, então, como solucionadores de problemas privados e questões entre desafetos. Estes são a “mão armada” de pessoas que tiveram um direito violado ou suposto como tal”.
“Os pistoleiros surgem como vingadores e restituidores da justiça de outrem, mediante soluções violentas, as quais, em parte, são legitimadas socialmente, quando existe um apelo social e a opinião pública é mobilizada para desqualificar a vítima: político corrupto, mulher traidora, comerciante desonesto, empresário inescrupuloso”
POLICIAIS NOS GRUPOS DE EXTERMÍNIO
As soluções violentas com desfecho trágico também envolviam diretamente policiais. Há cerca de 10 anos, PMs figuravam como membros de grupos de extermínio. Conforme César Barreira, o estudioso localizou vários pistoleiros que eram ex-policiais e eles eram quase unânimes ao dizer: “entrei para este mundo para continuar vivo”.
Os agentes tentavam justificar a participação como matadores de gente alegando que precisavam se proteger, sobreviver. Um dos casos de mais repercussão envolveu o sargento da Polícia Militar do Ceará (PMCE) João Augusto da Silva Filho, o 'Joãozinho Catanã'.
João foi condenado a 22 anos de prisão por homicídios e acusado de comandar um grupo de extermínio que agia em Fortaleza. Ele foi autorizado a cumprir prisão domiciliar e morreu em frente a sua residência, no bairro Autran Nunes.
Outro nome que repercutiu devido ao envolvimento no crime é o do cabo Pedro Cláudio Duarte Pena, conhecido como 'Cabo Pena'. Ele foi condenado a 14 anos de prisão, por homicídio duplamente qualificado, com motivo torpe e sem chances de defesa à vítima.
Pedro Duarte foi acusado por participar de um grupo de extermínio que assassinou Lenimbergue Rocha Clarindo. O crime aconteceu no dia 18 de julho de 2006, às 22h30, no bairro Jardim Iracema. Junto ao pistoleiro Sílvio Pereira do Vale Silva, o ‘Pé de Pato’ teriam invadido – invadiram a residência da vítima em companhia de outras seis pessoas, todas encapuzadas.
Há informação que o real alvo da ação era outro homem, com semelhanças físicas ao Lenimbergue. “Os assassinos estavam à procura de Abel, que juntamente com outros dois colegas, era acusado de ter assassinado o policial Claudionor Pereira da Silva, por volta das 5h50min do mesmo dia. O crime foi motivado por vingança”, divulgou o TJCE, na época da sentença.
Em 2017, o ‘Cabo Pena’ foi demitido da Corporação, por decisão da Controladoria Geral de Disciplina (CGD). De acordo com a CGD, a demissão de Pedro Cláudio se baseou no seu histórico criminal. "O aconselhado seria o líder do grupo de extermínio que culminou em diversos homicídios, conforme intercepções telefônicas devidamente autorizadas pelo juízo. [...] A conduta do militar aconselhado em ter seu nome diretamente associado a inúmeros delitos, dentre eles, crimes hediondos, inclusive, com sentença condenatória e prisão preventiva decretada, por si só, demonstra a incompatibilidade de seu comportamento com o mister da Corporação", justificou o órgão.