A anulação de provas da fase investigatória levou a mais uma série de absolvição de acusados de integrar facção no Ceará. Agora, foram inocentados réus empresários e demais acusados de formar um 'consórcio do crime' ligando o monopólio do 'Jogo do Bicho' à facção carioca Comando Vermelho (CV).
O grupo, alvo da 'Operação Saturnália', foi absolvido dos crimes de integrar/financiar organização criminosa, extorsão, porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e tráfico de drogas. Na mesma decisão proferida na Vara de Delitos de Organizações Criminosas há condenados por contravenção do jogo do bicho, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Nos memoriais anexados aos autos, as defesas dos acusados pediram a nulidade das provas.
A reportagem procurou as defesas dos réus para comentar a decisão, mas não localizou todos os representantes jurídicos. Os advogados Leandro Vasques, Holanda Segundo e Arthur Feitosa, que representam alguns dos réus, afirmaram que comemoraram a decisão de absolvição em alguns delitos, ainda que considerem "equivocada a condenação parcial", que será alvo de recurso.
"Comemoramos o êxito das absolvições de nossos constituintes em alguns delitos, mas não nos surpreende a sentença ora prolatada, embora ainda reputemos equivocada a condenação parcial, que será objeto do devido recurso ao Tribunal de Justiça. Não nos surpreende porque, há dois anos que a Defesa, em dezenas de requerimentos aos juízes da Vara de Orcrim, dezenas de HCs ao TJCE e ao STJ, vinha alertando sobre a temeridade de se manterem as prisões preventivas diante da ilicitude que contaminava o processo e do fato de que eventual condenação dificilmente ensejaria cumprimento de pena em regime fechado".
Os advogados destacaram que "embora muitas as tentativas, o sistema de justiça mais uma vez falhou, fez ouvidos moucos para as súplicas da Defesa. Agora, com quase 02 anos da decretação da prisão preventiva, tudo que a Defesa alertou que aconteceria, aconteceu. Metade da condenação em regime aberto já foi cumprida, mas só que em regime fechado. Quem lhes devolverá esse tempo? Quem lhes devolverá a perda do acompanhamento do nascimento de um neto, do casamento de uma filha, da convivência da primeira infância do bebê, do convívio com os filhos menores? Fica a reflexão acerca das prisões cautelares impensadamente decretadas”.
Já o advogado Túlio Magno, que representa o acusado Arnaldo Júnior Carvalho Viana, disse ter recebido "com tranquilidade o resultado da sentença. Ao longo das mais de 4.000 folhas do processo, foi provado que nosso cliente tem uma trajetória de vida irretorquível, de muito trabalho e honestidade, jamais incorrendo em qualquer ilicitude. Esse processo maculou por demais a honra e a imagem do meu cliente, de forma injusta e injustificada. Esse foi só o primeiro pronunciamento do Judiciário. Temos a convicção de que o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará reconhecerá a completa e inquestionável inocência de nosso cliente”.
O espaço segue aberto para a defesa dos demais envolvidos.
O Diário do Nordeste teve acesso à decisão, na qual consta que as absolvições aconteceram por uma extensão de nulidade de "provas contaminadas". O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) considerou a ilicitude das provas decorrentes da apreensão do celular de João Vitor dos Santos, o 'Adidas', companheiro de Francisca Valeska Pereira Monteiro, a 'Majestade', na 'Operação Duellum', que resultou na 'Operação Saturnália'.
'Adidas' é apontado como suposto membro de alta hierarquia do Comando Vermelho.
Em 2022, o Diário do Nordeste noticiou uma série de reportagens detalhando como, supostamente, empresários teriam se unido à cúpula da facção carioca no Ceará para 'lavar dinheiro' por meio do 'Jogo do Bicho'. A investigação chegou a apontar que dentro do esquema havia movimentação milionária, de pelo menos R$ 25 milhões, e ainda ameaças a moradores da periferia de Fortaleza.
DETALHES DA DECISÃO
A sentença foi proferida no último dia 12 de setembro e anexada ao processo no dia 24 deste mês. Conforme a decisão, "mesmo tendo a investigação chegado a identificar o vínculo entre os núcleos dos empresários e dos membros da organização criminosa, observa-se claramente que houve contaminação de toda a prova a partir do momento em que se faz a análise telemática conjunta entre a Operação Saturnália e Operação Duellum".
A contaminação de provas levou à condenação absolvição de Douglas Honorato Alves, por todos os crimes. Douglas foi apontado pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) como um dos líderes do Comando Vermelho no Ceará, tendo ocupado a posição após a prisão de Max Miliano Machado da Silva.
Outro réu absolvido por todos os crimes é o Paulo Roberto Soares Sampaio que, segundo os juízes, teve o nome mencionado na investigação "após a análise telemática de contas vinculadas a Douglas Honorato, portanto em relação a ambos, após a exclusão da prova contaminada".
No total, oito réus foram condenados por contravenção de exploração do 'Jogo do Bicho', lavagem de dinheiro e associação criminosa. Dentre eles, quatro da mesma família, à frente das loterias.
"A segunda fase da Operação Saturnália encontra-se contaminada pela nulidade decorrente da decisão do Egrégio TJCE, posto que a maior parte dos fundamentos que a decretaram, são oriundos da análise conjunta de elementos colhidos na Operação Duellum. É inequívoco o fato de que a inclusão dos acusados que supostamente integram o Comando Vermelho – CV, tais como Douglas Honorato, e todos os elementos de prova que encontram-se vinculados a este devem ser excluídos e/ou desconsiderados na presente sentença"
CONDENADOS:
- Antônio Rogério Bastos Gomes
- Arnaldo Júnior Carvalho Viana
- João Victor Feitosa Rodrigues Rebouças
- Luiz Alberto Bastos Gomes
- Marco Antônio Bastos Gomes
- Márcio José de Lima Souto
- Paulo Laércio Bastos Gomes
- Vicente Anderson Santos Aguiar
Cada um deles foi sentenciado a quatro anos de reclusão, cumpridos em regime inicialmente aberto. Para os juízes, sobre os "oito acusados acima referidos resto perfeitamente demonstrada a autoria delitiva da contravenção imputada pelo Ministério Público, posto que é fator comum em todos os depoimentos que seriam exploradores do jogo do bicho há décadas, inclusive todos constando nos quadros societários das empresas envolvidas".
De acordo com a decisão, todos os acusados "muito embora tenham reconhecido o envolvimento com a prática do jogo do bicho, negaram peremptoriamente a prática dos delitos imputados pelo Ministério Público"
Os magistrados reconheceram a existência de provas do crime de lavagem de dinheiro, "considerando que o dinheiro obtido com a exploração do jogo de azar em epígrafe era empregado em compras de diversos bens (inúmeros veículos apreendidos com os acusados), bem como que o grupo elaborava manobras de ocultação de patrimônio, transferido valores e bens a terceiros como forma de dar aparente legalidade ao capital proveniente das infrações penais".
"O grupo dos empresários acusados é formado pelos componentes das Loterias Gomes e Loterias do Povo, o quadro societário da Loteria Gomes é formado pelos acusados Paulo Laércio Bastos Gomes, Antônio Rogério Bastos Gomes e Luiz Alberto Bastos Gomes, já os quadros da Loteria do Povo eram formados pelos acusados Marco Antônio Bastos Gomes (sócio-administrador), João Victor Feitosa Rodrigues Rebouças e Arnaldo Júnior Carvalho Viana).
Os acusados tiveram suas prisões revogadas.
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E 'SALVES'
O MP disse na denúncia que os acusados do grupo empresarial teriam "financiado organização criminosa" a partir da exploração dos jogos de azar e para garantir uma suposta aliança com a organização efetuavam um pagamento regular para que a facção garantisse o monopólio geográfico do jogo do bicho.
"Conforme fundamentado no início da presente sentença, toda a prova que vinculava o grupo à aliança com a organização criminosa Comando Vermelho, foi reconhecida como nula, em razão da teoria dos frutos da árvore envenenada, o que implicou na absolvição de todos pela conduta imputada. Entrementes, encontra-se narrado da denúncia o fato de que, atuando em grupo de mais de três pessoas e de forma permanente praticaram, além da infração penal de prática do jogo do bicho, crimes de lavagem do dinheiro resultante da exploração do jogo do bicho, portanto a conduta subsume-se perfeitamente aos moldes do art.288 do Código Penal brasileiro, o crime de Associação Criminosa", segundo a sentença.
De acordo com a acusação, 'salves' foram divulgados determinando que todas as empresas interrompessem suas atividades, já que só poderiam continuar funcionando a Loteria Do Povo e "todos aqueles que quisessem permanecer nas atividades deveriam migrar para o grupo indicado, sob ameaça de, entre outras, tocar fogo nas sedes das Loterias que desobedecessem às ordens".
Ainda em 2021, foram registrados incêndios às bancas de loterias na periferia de Fortaleza e na Região Metropolitana, assim como ameaças aos "cambistas".
Na época, a investigação policial apontou que os empresários teriam se associado a integrantes do CV, com objetivo de uma expansão territorial e um "vultuoso aumento em seus lucros, haja vista que o acordo era no sentido de que mediante uma contraprestação financeira, os integrantes da organização criminosa forçariam os integrantes de loterias rivais a interromper suas atividades nas áreas de domínio do Comando Vermelho, oferecendo-lhes a possibilidade de migrarem para a Loteria do Povo, que deteria o 'monopólio' do jogo nas áreas de referência".
Em menos de 30 dias foram distribuídos seis comunicados de facções (conhecidos como 'salves' ameaçando populares. Acionamento do policiamento ostensivo seguido de boletins de ocorrência comprovaram as ameaças: "Após a disseminação das ameaças contidas nos informativos supramencionados, verificou-se a execução de atos de violência, tendo havido duas ocasiões distintas de incêndio".
A suposta negociata entre empresários de uma banca específica do jogo do bicho e liderança da facção carioca começou com uma reunião. A proposta, de início, era 25% da arrecadação da loteria para a facção, e em troca os criminosos fariam com que só aquela empresa pudesse atuar em determinadas áreas.
Há informação que o valor cobrado para outra banca poder atuar em um bairro da periferia, por exemplo, pode chegar a R$ 2 milhões. Quando não havia acerto entre as partes, os crimes eram consumados.