'Se o rio morre, morre tudo que vive perto dele': o cearense que resolveu limpar o rio Jaguaribe

“Na cara e na coragem”, amante do rio desobstruiu 15 km do leito, garantiu a volta das águas para abastecer ribeirinhos e alimentar os animais da caatinga

Ninguém disse que seria simples fazer alguma coisa, mas quando viu que naquele trecho do rio não passava mais água e os moradores da ribeira, no que inclui a bicharada, estavam à míngua, Ítalo Bezerra viu que mais difícil era ficar sem fazer nada. O diagnóstico estava claro: com os bancos de areia e a mata invasora crescendo no leito do rio, a pouca água que tem não chega. E se um dia der uma cheia como no ano de 2009, não tem calha do rio que segure. “Vai inundar tudo pelo caminho”. Era questão de sobrevivência não mais permitir oito nem oitenta.

“Depois da enchente de 2009, quando as águas baixaram, areia e mato tomaram de conta. E as pessoas continuaram jogando muito lixo. Depois ficou totalmente seco. E mais lixo”, descreve Ítalo Bezerra, num verdadeiro relato de como os rios morrem. Ele próprio ribeirinho, viu faltar água para várias comunidades. E dos 309 pequenos e médios produtores às margens dos 15 km entre Limoeiro e Tabuleiro do Norte, mais da metade parar as atividades.

Sem água, sem bicho, sem renda, sem comida na mesa, e não muito distante dali o próprio rio Jaguaribe represado pela inconsequência: sem calha, a água que tem não passa, não segue. Se esvai no meio do caminho.

Se todo mundo soubesse que a natureza é o que garante a sobrevivência do homem, que é um presente de Deus, todo mundo cuidava”
Ítalo Bezerra
Administrador

Ítalo é administrador de empresas, nasceu vendo o rio, cresceu vendo agigantar-se, e nessa atualidade vendo morrer alugou uma retroescavadeira, botou a máquina dentro d’água, arrancou a mata invasora, tirou areia, entulho e lixo. E seguiu fazendo o mesmo por várias semanas, sempre com a anuência do Comitê de Bacias Hidrográficas, da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) e do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE).

“Todo esse trabalho é feito com muito cuidado e tendo a vigilância desses órgãos competentes”, explicou Ítalo, que está fazendo uma segunda graduação, em engenharia, para aplicar suas competências no rio.

"É um trabalho coletivo"

Quando viu a água pedindo passagem, e passando, emocionou-se. Gravou um vídeo mostrando nas redes sociais o Jaguaribe caminhando, para que os outros vissem com seus próprios olhos. Parece que o sonho estava virando realidade. Ainda mais quando o grupo de limpadores se ampliou.

“É um trabalho coletivo, que dá gosto de ver. Fizemos uma vaquinha social pra conseguir as máquinas de fazer a limpeza. Dá um orgulho ver gente pobre, tão simples, contribuindo, tirando do pouco que tem pra ajudar a melhorar o rio. São pessoas que despertaram a importância da natureza, que é preciso preservar porque ela que nos mantém”.

O caminho ainda é longo. No mês passado, o “ambientalista” viu um caminhão depositar no rio 20 galões carregados de cinzas vindas de uma fábrica. “Meu amigo, pelo amor de Deus, não faça isso”, saiu gritando, correndo, espantado com a situação.

Encontrou uma solução pacífica: adquiriu as cinzas para fazer compostagem orgânica, que serão úteis para os próprios ribeirinhos produtores.“Eu fui fazer engenharia pra entender melhor essa realidade, do que é possível fazer para transformar pra melhor com o que tem”.

Bomba-relógio ambiental

O administrador fala com contentamento, mas não alívio: pelo nível de degradação do Jaguaribe, ele defende, por meio de seus levantamentos, que se não houver maior recuperação da calha do manancial, numa próxima enchente mais cidades serão inundadas.

“É uma bomba-relógio ambiental. Se o rio encher só 60% do que recebeu de água na cheia de 2009, Limoeiro, Tabuleiro, Itaiçaba, Jaguaruana e outros municípios ficarão debaixo d’água”.

Jaguaribe, do tupi “rio das onças”, se estende por mais de 600 km cortando dezenas de municípios cearenses. A água não é do tamanho da sua estrutura geológica, mas em apenas três meses foram 15 km de rio “renascido” entre duas cidades.

A consequência veio: com o leito liberado da mata, até o “veia d’água” subterrânea pediu passagem, voltou a pingar água das cacimbas. Com a seca amenizada, pássaros e animais rasteiros voltaram a aparecer no trecho recuperado. Mas quando viu peixe reaparecer, pescado pelos ribeirinhos para comer à mesa diante da carestia de tudo que se come, Ítalo teve a certeza de que a natureza reage conforme o que se faz com ela.

“Com uma ação coletiva, de conectividade, é possível transformar a vida das pessoas. Quando todo mundo entende, a questão fica simples”, diz. E é possível desafundar o Jaguaribe por quem dele vive.