O ano de 2020 impôs ainda mais dificuldades aos artesãos - grupo que vive em constante reinvenção. Manter esse ofício nunca foi uma tarefa simplória. Mas, com a chegada da pandemia do novo coronavírus, os desafios se multiplicaram. A criatividade impressa nas peças artesanais teve que romper fronteiras. O ano foi de assimilar as adversidades e buscar soluções para manter viva a atividade.
A Central de Artesanato do Ceará (CeArt) reconhece que, no início da pandemia, as vendas foram impactadas, assim como a produção, embora não tenha dados que corroborem essa tese. Já o artesão juazeirense Cícero Caetano Rodrigues, conhecido como Zumbin, consegue quantificar bem esse prejuízo.
Ele conta que as vendas caíram até 65%. Antes da pandemia, vendia de 100 a 150 peças por mês. No ápice do isolamento social - entre março e maio - esse número caiu para "menos de 50", detalha o artesão de 47 anos e que há 33 trabalha no Centro Cultural Mestre Noza, em Juazeiro do Norte, na região do Cariri.
Realidade semelhante foi vivenciada pela sobralense Maria das Graças Batista. Ela viu o volume de comercialização regredir 50%. "Agora está melhorando, mas no começo a queda foi grande", lembra.
A publicitária e artesã em formação, Mariana Marques, assente que "todas as cadeias sofreram com a pandemia, seja a indústria, o comércio, os pequenos empreendedores, etc. O artesanato, no entanto, sentiu ainda mais, por não ser um mercado tão estruturado e por alguns grupos não terem essa organização frente ao capital".
Alternativas
Com tamanho impacto, novas estratégias precisaram ser redesenhadas. A tecnologia, antes pouca explorada nesse universo, lançou um feixe de luz sobre o setor e apontou um caminho.
"Se não fosse a internet muita gente aqui no Mestre Noza teria quebrado. O local fechou completamente e o que nos salvou foram as vendas virtuais. A gente mandava foto dos produtos e por lá mesmo negociávamos. Foi nossa salvação", relembra Cícero.
Mariana reconhece essa necessidade de reinventar a distribuição e escoamento da produção para garantir renda nesse momento de regressão. "Vender pela internet, criar lojas temporárias e fazer com que o artesanato chegue nas mãos dos compradores sem que seja por intermédio de atravessadores, para que tenhamos um valor justo de pagamento ao artesão", acrescenta.
Essas estratégias, segundo ela, deram fôlego ao ofício e se mostraram eficientes para manutenção da renda dos artesãos. A CeArt também entrou nessa corrente, com expansão dos pontos de comercialização e fortalecimento dos canais de venda virtual.
"Mesmo com limitações físicas por conta do distanciamento social, a CeArt não mediu esforços para continuar oferecendo apoio aos artesãos cearenses. Sabemos que o impacto na geração de renda é inevitável em meio ao cenário pandêmico, mas com realização de pedidos, inauguração de novos pontos de venda, participação em eventos e distribuição de doações, atuamos com o objetivo de reduzir os prejuízos na vida dos nossos artesãos", destaca a coordenadora da Central, Patrícia Liebmann.
Incentivo
Diante da queda nas vendas, muitos artesãos viram minguar o capital de giro. "Sem vender, não entrava dinheiro. E sem dinheiro, a gente não podia comprar insumos para diversificar a produção e, assim, atrair os clientes", observa Maria das Graças. Com a proposta de quebrar esse ciclo, a designer Celina Hissa, fundadora da Catarima Mina, marca que assiste mais de 300 artesãs em todo o Estado, criou um fundo para manutenção dos pedidos.
"As compras não pararam. Mesmo que a artesã não tivesse a peça, ela recebia o valor e só depois nos entregava. Isso garantiu a permanência de renda", explica.
Celina avalia que a soma de esforços de empresas, ONGs e associações foi fundamental para que o impacto da pandemia fosse minimizado.
Lojas virtuais
A CeArt apostou no lançamento de uma loja virtual (www.lojaceart.online) com peças selecionadas e entregues gratuitamente para a cidade de Fortaleza, ampliando o alcance das produções e alavancando a geração de renda para os artesãos cadastrados.
"A plataforma, além de divulgar o trabalho dos artesãos, realiza todo o processo de comercialização, facilitando a compra para os apreciadores e expandindo os horizontes para quem produz", detalhou a CeArt.
Mariana também abriu um espaço virtual para divulgar as peças e "fomentar o trabalho de oleiros". O "Tempo Chamado Tempo", que conta com cinco colaboradores, compra argila ou até mesmo peças de barros já finalizadas e, assim "movimenta a cadeia produtiva". A publicitária explica que a intenção é juntar "várias linguagens do artesanato" e, assim, expandir o acesso à renda. "Algumas peças a gente agrega valor, com pinturas diferenciadas".
Esse projeto, criado há três meses, já beneficia mais de 20 oleiros de Messejana, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Essa valorização, tanto das peças quanto do profissional, é, segundo Marques, o grande desafio para manter vivo o artesanato. "Enquanto as filhas ou filhos dos artesãos acharem que as mães ou pais não estão num trabalho que é remunerado de uma maneira justa e digna, eles não vão sonhar com isso. É preciso valorizar para que a atividade seja longeva", conclui.
Legado
A diretora do Escritório do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae/Ceará) no Cariri, Tânia Porto, pontua que quando a pandemia for superada poderá deixar um importante legado aos artesãos.
"Todos eles tiveram que se reinventar. E isso é importante no contexto do aprendizado. Toda dificuldade, quando superada, deixa boas lições. O artesão, em especial, reviu suas entregas e criações e reavaliou o modelo de negócio", afirmou a especialista.
Para colher os frutos dessa mudança que fora imposta pela pandemia, Tânia adverte, no entanto, a necessidade de o artesão está capacitado "para as novas tecnologias". É nesse universo, até então novo para muitos, que o Sebrae Ceará imprime sua força. O órgão "investiu fortemente durante essa pandemia na criação e oferta de conteúdos especializados para esse público, a exemplo de consultorias tecnológicas, capacitações online e e-books", acrescenta.
"Após a maré ruim, sinto que estamos mais fortes, mais preparados. Quem conseguiu extrair aprendizados da pandemia, se dará bem", pressente Cícero Caetano.
A soma de esforços e a valorização das mais diversas expressões do artesanato asseguraram a manutenção da renda de muitas famílias. A modalidade de venda virtual foi ampliada e gerou novas possibilidades de negócios