Três pontos para entender a relevância de Carmen Lucia à frente do TSE nas eleições de 2024

Ela alcançou um feito inédito em 2012 e tornou-se a primeira mulher a presidir o TSE

Pela segunda vez em 12 anos, a ministra Cármen Lúcia é eleita para presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ministro Nunes Marques foi eleito como vice-presidente. O mandato bienal começa em 3 de junho e vai abarcar as operações do pleito municipal de 2024 e de parte do pleito geral de 2026. A magistrada sucede Alexandre de Moraes no cargo, após anos conturbados para a Justiça Eleitoral. 

Na primeira oportunidade, a ministra também assumiu o comando da Corte durante os preparativos para uma eleição municipal. Ela alcançou um feito inédito em 2012 e tornou-se a primeira mulher a presidir o TSE. Depois dela, somente uma figura feminina ocupou a cadeira: a já aposentada Rosa Weber, entre 2018 e 2020.

Cármen Lúcia compõe o colegiado eleitoral desde 2020, quando se tornou ministra substituta. Dois anos depois, foi efetivada na função. Em maio de 2023, foi empossada vice-presidente do TSE, ao lado de Alexandre de Moraes, em razão da aposentadoria do colega Ricardo Lewandowski, que ocupava o posto desde o ano anterior. 

“Agradeço, em meu nome e em nome do ministro Nunes Marques, a confiança do Tribunal pelos votos que nos foram dados, comprometendo-nos a honrar a Constituição e as leis da República com inteira responsabilidade e absoluta dedicação ao Tribunal Superior Eleitoral. A Justiça Eleitoral brasileira continua a cumprir a sua função constitucional em benefício da democracia brasileira”, destacou a ministra Cármen Lúcia, logo após o anúncio do resultado.

Mineira de Montes Claros, Cármen Lúcia é formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na carreira, tem o posto de professora titular de Direito Constitucional da PUC-MG, de advogada e de procuradora do estado de Minas Gerais. Ela é membro do Supremo Tribunal Federal (STF) há 16 anos, pelo qual foi indicada para o TSE.

O Colegiado do TSE é formado por, no mínimo, sete ministros titulares e sete substitutos. Destes, três devem ser advindos do STF, dois do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois da classe dos advogados. A presidência, por sua vez, é sempre exercida por um membro da Suprema Corte.

Retorno ao comando do TSE

Cármen Lúcia chegou ao topo do Poder Judiciário em 2006, quando foi empossada ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) na vaga deixada pela aposentadoria de Nelson Jobim. No biênio seguinte, chegou ao TSE como ministra substituta e nomeada diretora da Escola Judiciária Eleitoral. Em 2009, tornou-se ministra efetiva do TSE, galgando a presidência em 2012 para mandato que acabaria em 2014. Em 2020, retornou à Corte Eleitoral como ministra substituta. 

Nesse ínterim, foi vice-presidente e presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No primeiro caso, conquistou nova experiência na carreira ao assumir interinamente a Presidência da República em cinco oportunidades durante o ano de 2018: entre 13 e 14 de abril, em 18 de junho, em 17 e 18 de julho, entre 23 e 28 de julho e no dia 15 de agosto.

Já no segundo caso, teve como bandeira a otimização da fiscalização do sistema carcerário e o combate à violência doméstica. A bagagem da ministra a gabarita para a função no TSE, avalia o titular da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto.

“Cármen Lúcia é uma ministra muito experimentada. Então, ela tem uma vivência muito grande e, além disso, ela tem um corpo técnico no TSE muito qualificado para essa missão. [...] Eu vejo que nós vamos ganhar, com a entrada dela, uma visão, inclusive, mais qualificada, (sem) nenhum demérito aqui para o ministro Alexandre de Moraes”, analisa.

Se em 2012 a ministra esperava dar prioridade à aceleração de processos, à defesa da imprensa livre e à plena aplicação da Lei da Ficha Limpa – aquele era o primeiro pleito sob a nova legislação –, 12 anos depois, os desafios são outros. Segundo o Uol, ela já começou a dialogar com as grandes empresas de tecnologia a fim de alinhar o regramento para as eleições deste ano. 

A principal dúvida é sobre como funcionará o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDD), inaugurado em março deste ano como resposta aos episódios caóticos na política brasileira nos últimos anos. Da parte do TSE, há a intenção de assinar memorandos de entendimento sobre combate às fake news com as chamadas “big techs”.

Momento desafiador

A ministra também volta ao comando do TSE após o Brasil sofrer fortes turbulências políticas em contexto eleitoral. O pleito de 2022 foi o mais disputado da história, acirramento intensificado nos meses seguintes com a investida golpista contra os Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, em Brasília. 

O colega Alexandre de Moraes, como presidente da Corte, tornou-se alvo de ataques virtuais devido à sua postura incisiva de manutenção das estruturas democráticas pelas vias judiciais. Cármen Lúcia também não saiu ilesa desse processo. Em 2022, o ex-deputado federal Roberto Jefferson publicou um vídeo nas redes sociais xingando a ministra de "prostituta", entre outras palavras hostis. 

"Eu estou indignado. Não consigo. Fui rever o voto da Bruxa de Blair, da Carmem Lúcifer, na censura prévia à Jovem Pan, olhei de novo, não dá para acreditar. [...] Lembra mesmo aquelas prostitutas, aquelas vagabundas, arrombad*s, né? Aí que viram para o cara diz: 'E, benzinho, no rabinh*, nunca dei o rabinh*, pela primeira vez. É a primeira vez'. Ela fez pela primeira vez, ela abriu mão da inconstitucionalidade pela primeira vez. Ela diz assim: 'é inconstitucional, censura prévia é contra a súmula do Supremo', mas é só dessa vez benzinho. Bruxa de Blair", disse na ocasião.

As declarações ocorreram em reação a voto favorável de Cármen por punição à emissora Jovem Pan, após seus comentaristas veicularem informações distorcidas ou ofensivas ao então candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A posição da magistrada foi semelhante à de Moraes, relator do caso, e de Ricardo Lewandowski e Benedito Gonçalves. 

No fim, o julgamento rendeu um placar de 4 votos a 3 pela responsabilização da emissora. Já Roberto Jefferson foi preso em outubro daquele ano, também em consequência dos ataques a Cármen Lúcia, em operação marcada pela ofensiva armada do ex-deputado contra os policiais federais que cumpriam os mandados de busca e apreensão na sua casa.

“Pela primeira vez, a Justiça Eleitoral se tornou alvo da propaganda politica. A Justiça sempre foi um mediador social, mas, em 2022, foi levada a ser o próprio objeto de discussão politica. Nunca no Brasil, a Justiça teve que demonstrar a sua credibilidade, a credibilidade das urnas”, avalia Fernandes Neto. 

O momento impôs desafios não só a Moraes, como presidente, mas também a Cármen, como vice-presidente. A tendência é que a ministra siga com as medidas de defesa da democracia, apesar de o cenário, hoje, ser menos turbulento que em 2022.

“Eu acho que o grande desafio é a defesa da democracia em um contexto em que ela passou a ser atacada, mas também defendida. [...] Diante das tantas medidas tomadas para defender a democracia, penso que as pessoas não terão a mesma audácia que tiveram no 8 de janeiro. [...] Mas eu acho que ela (Cármen Lúcia) vai manter o mesmo ritmo de proteção”, projeta Raquel Machado Malenchini, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

A docente também aposta na capacidade de diálogo da ministra para tocar os projetos no TSE. “Acho que ela tem uma tendência mais democrática participativa. Então, por exemplo, nessa relação mesmo com o Congresso, com os críticos, a gente sabe que a relação do Moraes, por exemplo, com alguns setores da política era mais conflituosa. Talvez ela tenda mais ao diálogo, porque ela é uma pessoa aberta ao diálogo como um todo. Muitas decisões jurídicas dela – não somente as suas manifestações extraoficiais – sempre ressaltam a importância do diálogo democrático”, observa Malenchini.

Presença feminina nas eleições

O cenário de diversidade no TSE é um pouco diferente do STF, onde Cármen Lúcia é a única mulher. A presença de figuras femininas na Justiça Eleitoral, aliada aos avanços legislativos relacionados à presença da mulher na política, tem ajudado a intensificar essa agenda entre os Poderes.

O TSE tem firmado cada vez mais o entendimento sobre fraude à cota de gênero. O tribunal já tem jurisprudência consolidada sobre o tema: somente no ano passado, em sessões ordinárias presenciais, os ministros confirmaram a prática desse crime ao julgar 61 recursos.

Nos três primeiros meses de 2024, foram 20 processos julgados dessa forma. Na sessão virtual encerrada em 29 de fevereiro, foi reconhecida fraude à cota de gênero em 14 municípios de seis estados do país.

Ao detectar que partidos usaram candidaturas laranjas para atingir a cota de 30% e, assim, ter acesso a recursos eleitorais, o TSE tem seguido um padrão de punição. Consiste em anular os votos recebidos para o cargo naquele pleito, cassar os diplomas, recalcular os quocientes eleitoral e partidário e declarar a inelegibilidade dos envolvidos na fraude.

A posição jurídica também vem acompanhada de declarações que firmam a posição do tribunal e dos ministros. Carmén Lúcia, em julgamento recente sobre o tema, rebateu uma fala do ministro Raul Araújo e argumentou que mulheres são "invisibilizadas" e "silenciadas" na política. O colega havia afirmado que o rigor da Corte em casos semelhantes repeliria candidaturas femininas nas eleições deste ano.

"Os senhores homens, pelo menos nesta bancada, tiveram facilidades que eu não tive e nem tenho. Isso não me desanima de ser juíza brasileira. Isso me faz mais comprometida e responsável com outras que eu não estou vendo. Não se preocupe, mulher só desanima quando não está disposta mesmo", afirmou a ministra na ocasião.

“É muito representativo, nesse momento de consolidação da política de afirmativa de gênero na nossa sociedade brasileira, que uma mulher preside das eleições municipais, ou seja, as maiores eleições, em que tem o maior número de candidatos. (É um) momento em que muitos querem um retrocesso dessa política de afirmação”, aponta Fernandes Neto.

Está em discussão no Congresso Nacional uma nova reforma eleitoral, que, entre outros pontos, prevê uma flexibilização das políticas de inclusão de feminina. 

Enquanto isso, mesmo sendo maioria do eleitorado brasileiro, o percentual de candidaturas femininas nas eleições de 2022 foi de apenas 34%, ligeiramente acima da proporção mínima imposta pela legislação. Já do total de eleitos, elas foram apenas 18%, segundo as estatísticas do TSE.

A professora da UFC acredita que a gestão de Cármen Lúcia pode se assemelhar à de Rosa Weber nesse sentido. 

“(A Rosa) não só decidiu juridicamente a favor das mulheres, mas também tomou medidas administrativas que permitiram uma organização melhor do Poder Judiciário no apoio às candidaturas femininas, como ouvidorias, seminários, ações que eram feitas em prol da conscientização sobre a importância das mulheres política. Eu acho que ela (Cármen) fará a mesma coisa”, diz. 

Mudança no colegiado do TSE

Com a eleição realizada na terça (7), a vice-presidência também muda e fica sob titularidade de Kassio Nunes Marques, o segundo ministro mais antigo do STF no TSE. O rito também marca a reta final do mandato de Moraes na Corte Eleitoral. A vaga, então, é aberta para André Mendonça, que passa a ser membro titular do tribunal.

Além das alterações entre membros do STF, o colegiado do TSE passará por reacomodações da cota do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 6 de setembro, o atual corregedor-geral eleitoral, Raul Araújo, deixará o posto e dará lugar a Isabel Gallotti.

Assim, uma cadeira também fica vaga para receber Antonio Ferreira, da Corte Especial do STJ. Já os ministros André Ramos Tavares, ex-diretor da Escola Judiciária Eleitoral do TSE, e Floriano de Azevedo Marques, ex-diretor da faculdade de Direito na USP (Universidade de São Paulo), seguem no colegiado como membros titulares.