No Ceará, prefeituras articulam abono a professores com restos do Fundeb, mas nova lei ameaça rateio

Imbróglio gera insegurança sobre se o abono será pago e seus respectivos valores e beneficiários.

Já está na lista de expectativa dos professores da rede pública: no fim do ano, há grandes chances de serem pagos abonos salarias que chegam a até oito salários a mais. Os recursos são oriundos do rateio do que sobra da verba do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica, o Fundeb. Os governos são obrigados a destinar 70% dos recursos aos professores.

No Ceará, neste ano, a Associação dos Municípios do Estado, a Aprece, estima que cerca de 70% dos municípios avaliem conceder o benefício. Uma lei prestes a ser sancionada, no entanto, pode prejudicar esses planos. 

O projeto de lei 3418/2021, já aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, prevê a inclusão, na regra dos 70%, além dos professores e demais profissionais que atuam na aprendizagem dos estudantes, de todos aqueles que trabalham nas instituições de ensino. Com a ampliação dos beneficiados, é menos provável que sobrem recursos.

O deputado federal Idilvan Alencar (PDT) ressalta que a lei não foi aprovada com o intuito de ter efeito retroativo, no entanto é um cenário ainda instável, dadas as possibilidades de manobras que as prefeituras podem tentar fazer, considerando a possível sanção da lei ainda em 2021. 

A previsão da sanção pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) é para esta segunda-feira (27). As prefeituras têm até dia 31 para fechar os orçamentos e saber se sobrarão recursos, o que torna a tentativa de estender o benefício para este ano ainda possível.

Impasse sem resolução

O consultor econômico da Aprece, André Carvalho, alerta para o imbróglio que precisa ser resolvido ainda esse ano, uma vez que os recursos precisam ser destinados ainda no exercício do repasse.

"Essa é a grande celeuma: quando eram só os professores, com pequenos adendos, você não atingia os 70%. Quando inserir todo mundo, deve-se extrapolar essa marca e a figura do rateio deixaria de existir", afirma.

Segundo ele, caso sancionado na segunda, o PL deve gerar três tipos de situações diferentes para os federados:

  • A primeira são aqueles municípios que previam o pagamento do abono, terão de refazer as contas e mesmo assim não atingirão os 70% mínimos, de forma que ainda poderão fazer o rateio
  • A segunda são as prefeituras que programavam o rateio, mas que após o recalculo não terão verbas residuais para  realizar o pagamento do abono
  • A terceira são os municípios cearenses que já iniciaram o pagamento do chamado 14º salário. Nesse caso, ainda não há uma definição do que deve ser feito.

 

"Não tem como saber o que vai acontecer, seria um chute completo dizer o que pode acontecer. As instâncias fiscalizadoras é que vão, com suas interpretações, tratar desse tema", pontua Carvalho.

Pagamento do abono

Conforme levantamento do Diário do Nordeste com base em informações do Sindicato Apeoc, pelo menos 25 municípios já encaminharam a previsão de abono para aprovação no Poder Legislativo ou mesmo pagaram o benefício.

Desses, ao menos cinco já efetuaram o pagamento de pelo menos parte dos recursos aos professores até esta segunda (27), quando a nova lei deve ser sancionada.

É o caso de Jijoca de Jericoacoara, que esperava pagar mais de R$ 4 milhões através do rateio até a última sexta (22).

A prefeitura de Groaíras publicou o decreto com a ordem de pagamento do abono no início de dezembro, em situação semelhante à de Mucambo, que pagou o rateio do 16º salário na última terça (21).

O prefeito de Ipueiras, Junior do Titico, também decretou o rateio para a última terça (21).

Já o governo municipal de Uruoca aprovou o abono e pagou a primeira parcela ainda no mês de novembro. Ao todo, eram previstos mais de R$ 2,5 milhões que renderia 16º salários aos professores do município.

No entanto, tendo em vista a espera pela sanção da nova lei, a prefeitura decidiu adiar o pagamento da segunda parcela do abono, programada para a última segunda (20).

A Prefeitura de Tauá enviou projeto de Lei para a Câmara de Vereadores, dispondo sobre a possibilidade de abono. Há no entanto um prazo, até janeiro, para efetivação do pagamento, diante da instabilidade da legislação.

"A lei (municipal) foi aprovada e estabeleceu a necessidade da publicação de um Decreto Municipal até o dia 10 de janeiro, após a devida apuração do exercício financeiro de 2021. No entanto, a Prefeitura aguarda a sanção presidencial do PL 3418, aprovado recentenente pelo Congresso Nacional, que regularmenta questões relacionadas à nova Lei do FUNDEB, incluindo a concessão de abonos e rateios", diz nota da gestão da prefeita Patrícia Aguiar (PSD).

Na Região Norte, a prefeita de Granja, Juliana Aldigueri (PDT), anunciou o pagamento do abono aos professores, em forma de 16º salário, na última quarta-feira (22). Já Maranguape, na Região Metropolitana de Fortaleza, pagou o 14º salários aos professores efetivos e temporários na véspera de Natal.

Confira a lista dos demais municípios que devem pagar abono:

  • Abaiara
  • Aracati
  • Aracaú*
  • Ararendá
  • Beberibe
  • Caucaia
  • Cedro
  • Icó
  • Milagres
  • Morrinhos
  • Palmácia
  • Quixadá
  • Russas
  • Sobral
  • Tauá
  • Trairi
  • Viçosa

 

Apesar de ainda prever o pagamento do abono aos 740 professores do município, a prefeitura de Acaraú afirma que praticamente já atingiu os 70% dos recursos do Fundeb aplicados na remuneração do magistério.

Para ainda assim conceder o benefício, o governo municipal irá disponibilizar R$ 2 milhões próprios, conforme o controlador de Aracaú, Valdeci Martins dos Santos.

Além dos municípios, o governador Camilo Santana sancionou na última quarta (22) o rateio dos recursos do Fundeb para os profissionais da rede estadual.

A medida foi anunciada por meio das redes sociais do chefe do Executivo cearense.

Adiantamento de férias 2022

Outra manobra observada com os recursos do Fundeb é o adiantamento do pagamento de parte da folha salarial de 2022. A Prefeitura de Maracanaú pagou adiantadamente o salário de janeiro e 1/3 das férias dos professores na semana passada.

Conforme a diretora do Sindicato Unificado dos Profissionais em Educação no Município de Maracanaú (Suprema), Nivia Marx Monteiro, os recursos são oriundos do Fundeb, mas são relativos aos 30% livres para qualquer tipo de aporte.

Ela pontua que a entidade não recebeu justificativa clara para a medida, que desagradou a classe. Isso, porque as férias, previstas apenas para julho, foram pagas com base no salário de 2021, sem correção.

Monteiro ainda revela que o governo municipal irá pagar em janeiro, ainda com repasses do Fundeb, um auxílio tecnológico em parcela única para compensar gastos com infraestrutura que a classe possa ter tido durante as aulas remotas.

"Nós passamos o ano de 2020 em regime remoto sem nenhum suporte. Inclusive, nosso auxílio alimentação foi cortado. Em 2021, pouco mudou. O auxílio foi uma reinvidicação nossa, mas esperávamos que o valor fosse maior", argumenta a diretora.

Outro ponto de crítica é que o plano de carreiras de magistério do município está defasado. Segundo a entidade, há professores que solicitaram progressões por titulação em 2018 e ainda não receberam.

Questionada se iria fazer rateio de recursos residuais do fundo, a Prefeitura do município informou que o percentual obrigatório de 70% dos recursos do Fundeb para o pagamento de profissionais da Educação foi devidamente cumprido pela gestão municipal".

O texto ainda acrescenta que "os demais recursos foram investidos na aquisição de equipamentos e em infraestrutura das Escolas Municipais", sem citar os adiantamentos ou o auxílio tecnológico.

Em publicação nas redes sociais na semana passada, o governo municipal confirmou o adiantamento do pagamento de dezembro e das férias, além do auxílio tecnológico.

O post ainda informa que portaria que prevê a concessão das progressões de 34 profissionais que haviam requerido até 31 de dezembro de 2018 foi assinada e que os novos valores passarão a valer em janeiro de 2022.

Perguntada se os adiantamentos e o auxílio tecnológico são financiados com recursos do Fundeb, a Prefeitura de Maracanaú ainda não retornou até esta atualização.

Modulação da decisão

O presidente da Apeoc, Anizio Melo, reforça que o projeto de lei que aguarda sanção do presidente da República deve modificar os cálculos realizados para o rateio dos recursos residuais do Fundeb. No entanto, ele pontua que ainda não é claro sobre qual período a nova regra irá valer.

Segundo ele, há a possibilidade da medida valer retroativamente sobre todo o ano, o que obrigaria o recálculo de todas as prefeituras; há a chance de valer apenas para a folha de pagamento de dezembro; e há a possibilidade de valer apenas em 2022.

"A sanção é que vai definir o período de vigência. E mesmo assim, devem haver várias interpretações em relação a abrangência da lei, que é a regulamentação do novo Fundeb", afirma Melo.

Impactos do PL

André Carvalho, consultor econômico da Aprece, pontua que o projeto de lei já aprovado apenas confirma a intenção do novo Fundeb.

De acordo com ele, à época da definição do novo percentual mínimo a ser destinado ao magistério, já se queria a inclusão dos demais profissionais atuantes em instituições de ensino.

No entanto, a definição dos cargos considerados 'profissionais da educação' abrangiu apenas aqueles que atuavam diretamente com o ensino.

"Os efeitos práticos é que, nos anos subsequentes, a figura do rateio praticamente não existirá e possibilita a sobra de mais recursos para aplicação em investimento e custeio de ações que proporcionem a recuperação da aprendizagem perdida na pandemia"
André Carvalho
Consultor Econômico da Aprece

Sobre a possibilidade de desestimular a contratação de novos professores, uma vez que o emprego mínimo de 70% seria mais facilmente atingido pelos entes federados, Carvalho a descarta.

Ele argumenta que os planos de carreira são a instância que estimula a entrada de novos profissionais no magistério e que estes são consolidados.

Recursos insuficientes

Já o presidente da Apeoc, Anizio Melo, alerta que a inclusão dos demais profissionais na conta dos 70% mínimos pode gerar a falta de recursos suficientes para garantir o pagamento do piso e da progressão salarial.

Para que a ampliação fosse feita sem prejuízos, o percentual mínimo deveria subir para 80%, segundo ele.

"Os 70% de obrigatoriedade com a inclusão dos profissionais em geral, sem os maiores cuidados, pode trazer prejuízos a curto e médio prazo"
Anizio Melo
Presidente da Apeoc

Melo ainda revela que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) avalia ingressar com uma ação de inconstitucionalidade contra o PL para evitar os impactos negativos.

A previsão é que nesta semana haja uma reunião para últimas definições e que a judicialização seja concretizada já no início de janeiro.