Maus-tratos, estupro, abandono, violência na própria casa ou em via pública: transgressões contra crianças e adolescentes no Ceará culminaram no registro de mais de 5 mil denúncias no último ano. No cotidiano dessa realidade, estão 970 conselheiros tutelares espalhados pelos 184 municípios do Estado.
A cerca de oito meses para uma nova eleição dos conselheiros tutelares, responsáveis por auxiliar o Poder Público na proteção dessa população, especialistas apontam interferências políticas e religiosas como obstáculos para a atuação dos profissionais.
Denúncias de 24.464 violações contra crianças e adolescentes foram registradas no Ceará em 2022, conforme dados da ONDH
Ainda que os conselheiros tutelares enfrentem vários gargalos, como baixa remuneração e precariedade na manutenção dos órgãos para exercício pleno do trabalho, o prestígio de quem está próximo da comunidade em defesa da criança e do adolescente acaba atraindo outros interesses.
Assim, pessoas que não têm tanta dedicação na defesa da criança acabam se candidatando ao cargo com outro fim e negligenciando a função. É o que apontam especialistas ouvidos pela reportagem.
Interferências
Para o cientista político Cleyton Monte, que também é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC), uma cultura de politização nesses órgãos já está instalada há muito tempo, difícil de romper.
"A gente tem uma cultura de politização desses conselhos, principalmente na relação deles com vereadores, com a prefeitura, não apenas em Fortaleza, mas no Interior também. Isso cria uma relação muito difícil, uma lógica muito política para um serviço basicamente de cunho técnico", avalia.
Já para o cientista político e professor de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Emanuel Freitas, o problema é quando as interferências desvirtuam o caráter técnico da função.
"É um dos cargos mais importantes, mas nem por isso deixa de ser um dos cargos mais contaminados pelos interesses mais diversos, porque hoje já se constituiu como uma ponte para outros cargos políticos, como de vereador. A função primordial acaba sendo 'esquentar cadeira' para esses cargos eletivos. Deixa de ser uma função técnica, com atribuição constitucional e passa cada vez mais a atuar como braço político de alguém ou de igrejas"
Para o presidente da Associação dos Conselheiros, ex-Conselheiros Tutelares e Suplentes do Estado (Acontesce), Eulógio Neto, não há problema em usar o desempenho enquanto conselheiro como trampolim para cargos políticos, desde que seja em benefício da população vulnerável.
"O direito de o conselheiro tutelar pleitear um outro espaço, que é o da política partidária, para nós, se ele aproveitar esse espaço para fazer política para criança e adolescente será válido. Eu não vejo problema, o que eu vejo são disputas desleais. Porque às vezes aquele que tem uma militância, um trato dedicado à causa perde esse espaço para outros por conta de apoios"
Fragilidade e visibilidade
Para Eulógio, uma outra interferência política que passa despercebida é a dos gestores públicos municipais, já que eles são os responsáveis por enviar recursos para manutenção e funcionamento dos conselhos. Ele reclama que, quando os conselheiros não aceitam aderir a troca de favores, os recursos ficam cada vez mais escassos.
"O olhar do gestor municipal, principalmente do Interior, qualifica muito mal o conselheiro tutelar. Eles qualificam como 'o menino do conselho tutelar' ou 'a menina do conselho tutelar'. Eles tratam como se o conselho fosse um anexo de uma secretaria de assistência e isso acaba fragilizando o órgão, porque não tem essa garantia de direitos para exercer a função", analisa Eulógio.
Além de ex-conselheiro, Eulógio já foi vereador de Fortaleza. Ele foi eleito para uma vaga na Câmara em 2012 após ganhar visibilidade na função. Além dele, o vereador Emanuel Acrízio (PP) e os ex-vereadores Mairton Felix e Leonelzinho também já atuaram como conselheiros tutelares na Capital antes de assumirem cargos no Legislativo.
Um dos responsáveis pela fiscalização dos conselhos tutelares, o coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (Caopij) do Ministério Público do Ceará (MPCE), Lucas Azevedo, reconhece as interferências político-partidárias e religiosas nas instituições e alega que o órgão tem atuado para coibir ações do tipo.
"Nós temos algumas interferências que não são positivas para o bom desenvolvimento dos trabalhos dos conselhos tutelares: a político-partidária, da gestão municipal e a religiosa. Essas três interferências prejudicam esses órgãos em diversos fatores. O papel do Ministério Público é de fiscalização para tentar diminuí-las ao máximo. (...) Mas nós acreditamos que esse problema, infelizmente, deve se acentuar por conta do momento político que a gente vive"
Estruturas precárias
Para diminuir os gargalos em relação à estruturação física dos conselhos, o MPCE já notificou algumas prefeituras. Dentre elas, estão Chaval, Crato, Arneiroz e Madalena. As notificações pedem desde mudança de endereço para uma localização melhor à contratação de uma internet de qualidade.
A assistente técnica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Estado (Cedeca), Aurislane Abreu, pontua, ainda, que muitos municípios cearenses têm déficit no número de conselhos em relação à população.
No último dia 23 deste mês, o prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), enviou para a Câmara Municipal um projeto de lei para criar novos conselhos tutelares na Capital – dois ainda este ano e os outros dois em 2024. A medida ainda será votada pelos vereadores.
De acordo com a assistente técnica do Cedeca, atualmente Fortaleza tem um déficit de mais de 10 conselhos tutelares. A Capital, no entanto, paga a melhor remuneração, cerca de R$ 5 mil para os conselheiros, enquanto nos demais municípios a média é de um salário mínimo, conforme Eulógio Neto.
Violações
Em meio a esse cenário, a quantidade de ocorrências contra crianças e adolescentes aumenta no Ceará. Somente em 2022, 5.123 denúncias de 24.464 violações dos direitos desse público foram registradas no Ceará. O índice é 68% maior do que o notificado em 2021 (3.045 denúncias de 12.208 violações). As informações são do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), que contabiliza denúncias recebidas pelo Disque 100, Ligue 180 e aplicativos de Direitos Humanos do Brasil registrados à ONDH.
Apesar de alto, o número ainda revela um cenário de subnotificação comum em todos os estados do País. É o que aponta o presidente da Acontesce.
"Esses dados são pífios, pequenos perto da realidade que passa o Estado do Ceará. Isso é o farelo, é o que é denunciado. De 10 pessoas, uma tem coragem de denunciar"
Vale ressaltar que uma denúncia pode conter mais de uma violação, alegando que a criança foi agredida, violentada e negligenciada, por exemplo.
Entre as principais violações registradas contra crianças e adolescentes no Estado em 2022, estão maus tratos, agressão, tortura, alienação parental, abandono, exploração sexual, entre outras. A maioria dos casos ocorreu dentro da casa da vítima e do suspeito (55%) e 67% das violações ocorriam diariamente.
Além disso, praticamente em todos os casos quem denunciou as violações foi um terceiro (87%).
Questionado se todas essas denúncias são acompanhadas pelos conselheiros, Eulógio Neto aponta que não, porque, muitas vezes, não há sequer recursos para os agentes se informarem ou acompanharem as ocorrências devido a negligência de investimento nos órgãos pelas gestões municipais.
"Tem conselho tutelar que falta internet, que falta papel ofício para encaminhar um simples ofício para um órgão. Apesar de que hoje você está em frente ao computador, falta internet para o conselheiro conseguir alimentar o programa Sipia, onde você abastece as demandas em atendimento. Falta um carro para o conselheiro ir verificar uma denúncia", revela.
Subnotificações
Como exemplo da subnotificação, ele aponta a concentração de denúncias nas cidades que mais investem na manutenção dos conselhos.
"Por que será que, no Estado do Ceará, de 184 municípios, só seis concentram os maiores problemas? Isso é culpa do gestor, do prefeito. Ele é o maior culpado pela subnotificação de violações contra a criança e adolescente no nosso Estado", conta.
Do total de denúncias contabilizadas pela ONDH, 2.747 dos ocorreram em Fortaleza (53%), 280 em Caucaia (5%), 168 em Juazeiro do Norte (3%) e o restante nos demais municípios.
Eleição
Já de olho na eleição e em busca de evitar abuso de poder religioso ou político no resultado das urnas, o MPCE vai realizar, nesta terça-feira (28), um evento para tratar sobre a eleição dos membros dos conselhos tutelares. No Ceará, há 194 conselhos tutelares – sendo 8 em Fortaleza, 2 em Caucaia, 2 em Juazeiro do Norte e um em cada um dos demais municípios.
Para cada conselho, são eleitos cinco conselheiros tutelares, como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por isso, a população cearense vai às urnas no dia 1º de outubro para escolher 970 conselheiros tutelares que irão atuar em defesa da criança e do adolescente.
A eleição conta com o apoio do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE), que disponibiliza as urnas eletrônicas e organiza as seções. Todavia o voto não é obrigatório, e sim facultativo. Por isso, não é incomum ver condutas irregulares dos candidatos no dia da eleição.
Para evitar condutas ilícitas, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente publicou uma resolução em 2022 para punir os candidatos que pratiquem abuso de poder político ou econômico. Para Lucas Azevedo, a medida vai permitir que o MPCE atue para responsabilizar e impedir a posse dos postulantes que cometerem ilícitos, como compra de voto, propaganda irregular, etc.
"Qual é a grande novidade dessa resolução, que é de aplicabilidade obrigatória? Todas aquelas condutas ilícitas de abuso de poder econômico ou político foram introduzidas na eleição de conselhos tutelares. O candidato que estiver cometendo algum tipo de ato ilícito pode ser considerado inidôneo para assumir o cargo e, através de uma ação do Ministério Público, pode ser impedido de assumir o cargo mesmo sendo eleito. Hoje isso é possível. Anteriormente nós não tínhamos essa previsão"
A presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), Mônica Gondim, disse que o órgão também está atento a possíveis irregularidades no período pré-eleitoral e no dia pleito e que participará do evento junto com o MPCE para orientar os candidatos.