O segundo turno da disputa presidencial na Argentina ocorre neste domingo (19) e o resultado deve ter importante repercussão para o Brasil, já que opõe dois candidatos de projetos políticos opostos: o peronista Sérgio Massa e o 'anarcocapitalista' Javier Milei.
Para além da parceria comercial com o país vizinho — terceiro maior comprador de produtos brasileiros —, existe uma relação histórica entre as duas nações e uma importância estratégica da Argentina para a meta de fortalecimento do Brasil na política externa.
O acirramento mostrado pelas últimas pesquisas eleitorais, com ligeira vantagem para Milei, mostra um cenário ainda incerto sobre quem alcançará a vitória neste domingo — em uma eleição marcada pelo aumento da intolerância e por um cenário político inédito desde a redemocratização da Argentina.
E, apesar de projetos políticos distintos, os dois candidatos têm desafios semelhantes caso sejam alçados à presidência da Argentina: um país em profunda crise econômica, com inflação ultrapassando os 100% ao ano e 40% da população vivendo em situação de pobreza.
Sérgio Massa x Javier Milei
Cientista política pela Universidade de Buenos Aires, Geraldina Dana descreve dois eixos complementares que formam a política argentina e são importantes para entender em qual contexto ocorre a disputa presidencial de 2023.
"A principal divisão na política argentina é a divisão entre peronismo e antiperonismo. Isso não quer dizer que na política argentina não exista uma ideia de esquerda e de direita, mas se fossem eixos, a ideia de esquerda e direita seria o eixo X e teríamos um eixo Y, um outro eixo vertical, que seria o peronismo e antiperonismo", descreve.
Neste caso, continua a pesquisadora, "os candidatos, os partidos e os movimentos são, por exemplo, peronistas de esquerda, peronistas de direita, antiperonistas de esquerda e antiperonistas de direita".
O peronismo é um movimento que surge na Argentina na década de 1940, durante o governo de Juan Domingo Perón, e que possui como motes as ideias de justiça social e de um capitalismo "tutelado pelo Estado".
Neste século, duas figuras importantes do peronismo foram os ex-presidentes Néstor Kirchner e Cristina Kirchner — atual vice-presidente da Argentina, que está sob comando de Alberto Fernández.
"Esse movimento (peronismo) começa a ser hegemonizado pelo kirchnerismo, que é uma linha interna do peronismo e, sobretudo na figura de Cristina Kirchner, pode ser interpretado como um peronismo de esquerda", explica Geraldina Dana.
Com críticas centradas, sobretudo, na condução econômica do País — mas que também passa por denúncias de corrupção e o tratamento dado à oposição —, o peronismo encontrou no ministro da Economia, Sérgio Massa, um candidato de consenso.
Ex-prefeito de Tigres, cidade no norte da Argentina, Massa tem um perfil "conciliador", sendo um "peronista mais de centro", conforme define Dana, e que propõe uma continuidade na "ideia peronista de justiça social", mas também possui propostas para aumento da eficiência do Estado argentino.
Do lado antiperonista, a principal força esteve, por anos, concentrada no partido Proposta Republicana (Pro), liderado pelo ex-presidente argentino Mauricio Macri — os dois lados vinham polarizando as disputas eleitorais no país vizinho.
Contudo, em 2023, a candidata apoiada por este movimento, a ex-ministra da Segurança da Argentina, Patricia Bullrich, acabou fora do segundo turno.
Grande surpresa das primárias argentinas, o candidato de extrema-direita Javier Milei foi quem continuou na disputa presidencial. Trazendo um discurso 'anarcocapitalista', Milei se apresenta como um outsider da política, com foco em um discurso antipolítica.
"Em um contexto de uma alta inflação, ao redor de 100% anual, na Argentina atualmente, em um contexto de desvalorização da moeda, então de baixos salários em comparação ao resto do continente, e muita informalidade no mercado de trabalho, (...) essa figura capitalizou a frustração de uma população cuja economia não está no melhor momento possível", ressalta Geraldina Dana.
Relação Brasil-Argentina
País com a "fronteira mais viva" com o Brasil, conforme define o doutor em Relações Internacionais e professor de História da Universidade de Brasília (UNB), Carlos Eduardo Vidigal, a Argentina possui uma trajetória, com o Brasil, de "desentendimentos e convergências que remonta ao período colonial".
Professor e pesquisador de Relações Internacionais da Universidade de Fortaleza, Philippe Gidon ressalta a relação "histórica" entre os dois países — perpassando aspectos políticos, econômicos e mesmo militares ao longo dos séculos.
E que ganha novos contornos com a redemocratização de ambos na década de 1980, quando Brasil e Argentina "estabeleceram um eixo de consolidação de modelo democrático e desenvolvimento econômico” dentro da América do Sul.
Por anos o principal parceiro comercial do Brasil, a Argentina representa, atualmente, 5% das exportações brasileiras — sendo o terceiro maior comprador de produtos do Brasil. O país fica atrás apenas da China (30%) e dos Estados Unidos (10%).
Contudo, uma das exportações para o nosso vizinho é a diversidade de produtos. "As exportações são diversificadas, em particular de produtos industriais, enquanto a China tem mais agropecuários e minérios", compara. Por outro lado, o Brasil continua a ser o principal comprador de produtos argentinos, tornando a "manutenção de uma boa relação mais importante para a Argentina do que para o próprio Brasil, completa Gidon.
O professor Carlos Eduardo Vidigal também ressalta ainda a importância do histórico de Brasil e Argentina quando o assunto é política externa. "É o país com que o Brasil mais dialogou em matéria de relações internacionais, talvez tanto quanto Grã-Bretanha e Estados Unidos", ressalta.
Além disso, a Argentina é um dos países fundadores do Mercosul — organismo multilateral importante para a política externa desenvolvida pelo Governo Lula (PT) — e é um dos países que iniciou o processo de adesão ao Brics — também parte de uma negociação do governo brasileiro.
Disputando a presidência da Argentina, Sérgio Massa e Javier Milei têm posicionamentos opostos tanto quanto as propostas econômicas como quanto ao posicionamento na política externa — tornando o resultado especialmente relevante para as estratégias diplomáticas desenvolvidas pelo Brasil.
Qual o impacto da eleição argentina para o Brasil?
Ainda em outubro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT) falou que era "natural" a preocupação do governo brasileiro quanto ao resultado da eleição argentina, principalmente quanto à eventual vitória de Javier Milei.
"Uma pessoa que tem como uma bandeira romper com o Brasil, uma relação construída ao longo de séculos, preocupa. É natural isso. Preocuparia qualquer um... Porque em geral nas relações internacionais você não ideologiza a relação", disse Haddad.
Apesar de, no último debate presidencial, no dia 12 de novembro, ter afirmado que a relação comercial com o Brasil "é uma questão de mercado privado e o Estado não tem porque se meter", Milei disse, no dia 8 de novembro, que não se reuniria com o presidente Lula, a quem chamou de "comunista" e "corrupto".
Para o professor da UNB, Carlos Eduardo Vidigal, ao pensar em possíveis impactos na relação dos países caso a vitória seja de Milei é preciso "descontar o que é bravata de campanha eleitoral".
"No período que coincidiu (o ex-presidente Jair) Bolsonaro e (o atual presidente argentino Alberto) Fernandez, com sinais políticos trocados, por mais que tenha ocorrido críticas de parte a parte, as relações diplomáticas e negociações econômicas, inclusive no Mercosul, continuaram a existir", exemplificou.
Para Vidigal, "as relações Brasil-Argentina vão seguir as mesmas dificuldades que tem tido nos últimos 20 anos". Entre os problemas, o enfraquecimento enfrentado pelo Mercosul, além de uma diminuição das exportações de produtos brasileiros pela Argentina — cenário provocado pela crise econômica vivida pelo país vizinho.
Apesar de concordar que "todo candidato costuma exagerar na dose do que vai fazer", para Gidon a dificuldade na relação política pode ser prejudicial para o comércio entre os países.
"Deixar os empresários tomarem as suas decisões não é muito factível, porque, especialmente investimentos estrangeiros, são dependentes de boa relação política, de quadro regulatório seguro e isso é uma liderança política que permite existir", explica.
A cientista política Geraldina Dana concorda. "A relação econômica e comercial é gerenciada por interesses, mas o relacionamento político entre estados é relevante para criar condições ótimas de negócios", reforça.
Ela cita como exemplos o fato de Milei já ter afirmado que não aceitaria fazer parte do BRICs, o que "seria uma oportunidade comercial, financeira e também política que a Argentina estaria deixando do lado".
Apesar disso, ela afirma que não acredita em uma mudança na relação da Argentina com o país que ainda é principal parceiro comercial do país.
"Mas essa relação pode ser melhor explorada ou pode ser despriorizada, e por isso também o resultado da eleição vai ser importante para as relações argentino-brasileiras do futuro", ressalta.
'Pedra no sapato' para o Brasil
Além das relações comerciais, o alinhamento a nível de política externa também deve ser impactado pelo resultado eleitoral. Um dos pontos centrais seria quanto ao fortalecimento, ou não, de entidades multilaterais que são parte da estratégia do governo brasileiro, como o Mercosul e o Brics.
Com propostas econômicas de difícil implementação — como a dolarização da economia argentina e a extinção do Banco Central —, Philippe Gidon aponta que Milei deve começar um eventual governo insistindo na saída do Mercosul e recusa à entrada no BRICs, transformando-se em uma "pedra no sapato para a política externa brasileira".
"O desmantelamento dessa instituição (Mercosul) é uma ferramenta a menos que o Brasil tem à disposição para conseguir aumentar o seu número de credibilidade de projeção internacional", ressalta.
Apesar de um alinhamento externo com o Brasil, com a projeção tanto de continuar no Mercosul como de aderir ao BRICs, os pesquisadores apontam também dificuldades trazidas por eventual vitória de Sérgio Massa — principalmente, quanto a continuidade das políticas econômicas do peronismo.
"Essa eleição em particular ocorre em um momento de crise econômica profunda e não há perspectiva de saída fácil da crise econômica e da difícil situação política que o país enfrenta", ressalta Carlos Eduardo Vidigal.
E, neste caso, Massa "significa continuidade tanto de Cristina Kirchner quanto do Alberto Fernandez do ponto de vista político, marcado pelo dirigismo econômico, pelo protecionismo e por práticas clientelistas junto a grandes empresas".
"O Massa é mais do mesmo, porque é oriundo do governo atual. Ele, na campanha, está enfatizando iniciativas que tomaria, mas faz parte da mesma linha do governo, que não tem tido sucesso", completa Gidon.
O professor da Unifor ressalta que vai o governo brasileiro vai ser "cobrado", no caso de vitória de Massa, para ter "um nível de engajamento" na recuperação da Argentina, o que "poder ter um efeito contrário ao desejado", já que "a própria economia brasileira precisa da atenção do governo brasileiro".
Acirramento e intolerância política
Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados — Secção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto participou como observador do primeiro turno da eleição na Argentina, no dia 23 de outubro.
Integrante da Conferencia Americana de Organismos Electorales Subnacionales por la Transparencia Electoral, esta foi a segunda vez que ele foi observador no país vizinho. A primeira foi em 2019, quando Mauricio Macri perdeu a reeleição para Alberto Fernandez.
Fernandes Neto ressalta que as duas disputas tiveram "clima totalmente diferente". "A intolerância política chegou na Argentina. As disputas de rua, as disputas de fake news, inclusive com utilização de inteligência artificial. Tem sido uma campanha bem sentimentalista, apelando para o sentimentalismo", explica.
Ele cita, por exemplo, estratégias de Javier Milei de se apresentar como um "super herói", inclusive com peças publicitárias em que aparece de capa. Ele também cita o fato de que o candidato da extrema-direita, a exemplo do que ocorreu no Brasil, tem questionado o sistema eleitoral argentino.
A Argentina, contudo, usa o sistema de cédulas eleitorais, nos quais os partidos de cada candidato é que disponibiliza as cédulas para a votação. Dois documentos, com a apuração por local de votação, também são disponibilizados para os partidos para uma apuração paralela. "Não há divergências", relembra Fernandes Neto ao falar dos resultados eleitorais na Argentina.
O advogado ressalta ainda que não há tanta judicialização da campanha. No caso das propagandas, é porque não há "legislação rígida sobre a propaganda eleitoral" como no Brasil. "Mesmo que sejam fake news, não são restritas pelo Conselho Eleitoral. Não há um órgão que organize isso", ressalta.
Por outro lado, também há pouca prática de abuso político e econômico na disputa eleitoral argentina. "Não é da tradição argentina a prática de compra de votos, de abuso de poder político e econômico", afirma.
Com grande acirramento nas pesquisas eleitorais, que têm demonstrado empate técnico entre Javier Milei e Sérgio Massa, com pequena vantagem para Milei, os entrevistados pelo Diário do Nordeste concordam que o resultado eleitoral ainda é incerto.
Se por um lado, existe grande insatisfação com o peronismo representado por Massa, por outro propostas econômicas pouco factíveis e o discurso extremista de Milei "cria um medo" entre os eleitores argentinos, afirma Geraldina Dana.
Para a cientista política natural de Buenos Aires, a Argentina deve vivenciar um outro fato pouco usual neste segundo turno. "Algumas pessoas vão votar em branco, o que não é tão habitual assim na Argentina. Na minha opinião, a gente vai ver mais votos em branco do que a gente está habituada a ver, que é ao redor do 2%, como norma, como norma. acho que nessa eleição vai ser maior", disse.