De um lado, o Ceará registra episódios que evidenciam a tentativa das organizações criminosas de influenciar as eleições municipais de 2024. Por outro, a Justiça Eleitoral e as forças de segurança do Estado tentam barrar esse tipo de interferência no processo democrático.
Foi com esse intuito que o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) instituiu o Comitê de Enfrentamento à Influência da Criminalidade Organizada nas Eleições (CEICOE), no final de agosto deste ano. O objetivo é coordenar ações interinstitucionais para prevenção e repressão.
Além de membros do TRE, o Comitê reúne representantes de diversos órgãos, como Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social; Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Exército; Marinha; Aeronáutica; Detran; Corpo de Bombeiros; Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública; Secretaria da Administração Penitenciária; AMC e Guarda Municipal de Fortaleza.
Como mostra reportagem do Diário do Nordeste, o TRE já mapeou seis municípios que demandam mais atenção pela presença ativa de facções na disputa. As ações criminosas incluem ameaças a eleitores e candidatos, intimidação a campanhas e moradores, além da extorsão de políticos.
CAMINHO DESAFIADOR
As ações emergenciais visam diminuir a interferência do crime organizado no processo eleitoral, mas a desarticulação desses grupos se mostra um grande desafio. Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso, três aspectos poderiam ser priorizados nesse sentido:
- dissuasão focada para redução de homicídios;
- diminuição da letalidade policial;
- redução da força econômica das facções.
Para o primeiro enfoque, Manso ressalta que é preciso ter um olhar que leva em consideração o medo das pessoas e o problema delas de viverem sob o jugo desses grupos armados, mas, ao mesmo tempo, respeite direitos e que não sejam medidas que reproduzam os erros de “populistas penais”. Nesse sentido, entra em jogo a dissuasão focada.
“Quando acontece um homicídio ou uma chacina, você pode, por exemplo, ocupar aquele lugar por um período e passar informação para os grupos que uma coisa é vender droga, outra coisa é usar violência para vender drogas, e se você usar a violência você vai quebrar, porque a gente vai ficar três meses aqui, se relacionando com a população, e você não vai poder vender drogas e você vai ter um prejuízo muito grande, você começa a dissuadir grupos que usam a violência”
Outro ponto passa pela redução da letalidade policial, indica o especialista, que também é jornalista e autor de livros, como ‘A República das Milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro’, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021.
“Os estados que têm visto a letalidade policial crescer muito nesses últimos anos, também são sintomas do descontrole dos Executivos sobre suas polícias. Quando o Executivo perde o controle das polícias, ele acaba sendo um passo para o surgimento das milícias, porque uma polícia que se sente livre para matar, ela vai vender esse poder na cena criminal. Você vender a vida e a morte é um poder muito grande. A letalidade policial acaba vindo junto com a corrupção policial”, relata Manso.
Já o terceiro aspecto exige uma mudança drástica de rota. Para o pesquisador, em vez de focar no patrulhamento ostensivo e nas prisões em flagrantes, que vem superlotando os presídios, é preciso pensar em formas alternativas de lidar com o crime.
“Você tem produzido efeitos colaterais com pensões superdotadas fortalecendo os chefes das facções que têm ascendentes sobre os bairros. E você gera um ciclo vicioso e um problema muito sério. Então, a gente tem que repensar esse modelo e atuar em formas estratégicas de lidar com o crime, atuando no sistema financeiro dos caras, de como eles usam contas laranjas e empresas de fachada, como é que eles lavam dinheiro e criptomoeda, reduzir a força econômica desses grupos, porque é isso que faz girar a indústria do crime também muitas vezes”, enfatiza.
Por sua vez, o sociólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Artur Pires, é pessimista acerca de uma saída em curto prazo para o problema. Mesmo assim, aponta que, a longo prazo, o caminho passa por uma mudança de configuração político-econômica da sociedade como um todo.
“A gente precisa pensar que esses grupos armados periféricos são compostos, na maioria, por jovens da periferia que tiveram poucas condições de educação, de saúde e de acesso à cultura e lazer. Então, o buraco é mais é bem mais embaixo e é mais no sentido de você garantir dignidade à população como um todo. Essa é a solução para combater a criminalidade de uma forma geral, para diminuir essa violência que assola o Brasil e vem se imiscuindo na política tradicional cada vez mais”, defende.
Ações no Ceará
Na primeira reunião do CEICOE, realizada em 10 de setembro, já foram feitos encaminhamentos para encarar as atividades do crime no âmbito eleitoral. O juiz auxiliar da presidência do TRE-CE, Tiago Dias, ressalta que, para além do momento inaugural, os membros do núcleo já se encontraram outras vezes para debater ações sigilosas.
O aumento do efetivo policial, a reestruturação do funcionamento de delegacias e, até mesmo, a análise de contas de campanha foram algumas ações direcionadas aos municípios que geram uma “preocupação maior”, segundo o magistrado.
“Nossa ideia é justamente fazer com que esses grupos percam esse estímulo, porque, na medida em que houver uma ação concentrada da Polícia Civil, Polícia Militar, Polícia Federal, sobre aquele local; então, em vez desse envolvimento na política se tornar algo que seja vantajoso para aquela organização, se torna algo desvantajoso, porque vai atrair justamente o holofote e uma ação articulada dos órgãos. A ideia do comitê é justamente essa: ter uma ação que seja de várias frentes e que possa então desencorajar”
O CRIME NA MIRA
No documento que instaura o Comitê, o TRE indicou as dez principais providências que poderão ser adotadas, de forma isolada ou conjunta, contra as facções:
- investigação dos crimes eleitorais pela Polícia Federal;
- aumento de efetivo das polícias Civil e Militar no município ou localidade;
- ações de repressão ao tráfico de drogas, com o intuito de retirar as fontes de financiamento ilícito de campanhas;
- identificação das lideranças criminosas envolvidas e priorização da tramitação das respectivas ações penais;
- inclusão de pessoa presa responsável pelo ato em estabelecimento penal federal de segurança máxima;
- acompanhamento das investigações e processos instaurados, mesmo após finalizado o pleito, para fins de a garantir a duração razoável do processo;
- colaboração com tribunais de contas para análise das prestações de contas de campanha;
- incremento da segurança de magistrados(as) e servidores(as);
- requisição de Força Federal para garantia do livre exercício do voto;
- encaminhamento para a Comissão Permanente de Segurança das demandas relativas a suas atribuições.
Embora as deliberações do CEICOE sejam consultivas e opinativas, Tiago pondera que as medidas têm sido atendidas pelos órgãos responsáveis, que recebem as demandas após as decisões do núcleo. Nos locais que demandam mais atenção, inclusive, o monitoramento deve ultrapassar o período eleitoral.
“Nós vamos continuar acompanhando e monitorando essa situação até as eleições e, posteriormente, também. São várias fases. Por exemplo, os candidatos vão prestar conta dos recursos que foram utilizados nas suas campanhas. Nesses locais em que houver uma suspeita, essas contas serão analisadas com uma atenção maior, digamos assim, vamos direcionar para técnicos mais experientes, saber se realmente tem algum recurso vindo de alguma origem suspeita. Se houver, por exemplo, processos judiciais que sejam decorrentes dessas ações, de prisões, de buscas, etc., nós vamos acompanhar para que esse processo tenha um seguimento célere”, enfatiza o juiz.
ESFORÇO INTERINSTITUCIONAL
Esse enfrentamento também conta com o auxílio do Ministério Público do Ceará (MPCE). O órgão indicou que tem promovido mais reuniões com grupos da Segurança Pública das esferas estadual e federal, solicitando um maior reforço tanto nas investigações quanto no trabalho ostensivo.
“Cada promotor eleitoral está fiscalizando na sua zona eleitoral. Quando eles precisam, pedem o auxílio do Centro de Apoio ou, então, da Procuradoria Regional Eleitoral. (...) Nós estamos mantendo contato com os órgãos de segurança para caso aconteça algum episódio que precise de apoio. O secretário de Segurança tem correspondido, e a Polícia Federal também”
A preocupação com a interferência das facções na disputa alcançou o âmbito nacional e entrou na ordem do dia do Ministério Público Federal (MPF). Em reunião geral no último dia 3 de setembro, o procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, defendeu um trabalho coordenado dos procuradores e promotores eleitorais com os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos), bem como a Justiça Eleitoral e outros órgãos de fiscalização.
APOIO FEDERAL
Uma das medidas de combate passa pelo reforço às forças de segurança do Estado. Nesse sentido, 26 cidades cearenses receberão tropas federais no dia das eleições (Veja a lista completa).
O número é mais do que o dobro do que foi enviado no último pleito municipal, em 2020, quando 10 municípios receberam reforço federal. O objetivo é garantir a tranquilidade da eleição, principalmente em regiões onde as forças locais podem enfrentar dificuldades para manter a ordem pública.
O anúncio foi feito durante o encerramento do workshop "PMCE: Atuação nas Eleições 2024", no dia 19 de setembro. O encontro teve como público-alvo oficiais comandantes de batalhões, companhias e companhias independentes da corporação.
Presidente do TRE-CE, o desembargador Raimundo Nonato Silva Santos manifestou, inclusive, o intuito de debater a antecipação da vinda dos agentes. A ideia é encaminhar as tropas para locais que, segundo o magistrado, estão “dando mais trabalho", citando os casos de Sobral, Caucaia, Santa Quitéria e Morada Nova.