Baú da política: Padre Cícero venceu eleição para deputado federal, mas nunca foi tomar posse

Na data que marca os 180 de nascimento do santo popular, o Baú da Política relembra uma história pouco conhecida da trajetória política do religioso

Em processo de beatificação há dois anos e responsável por levar milhares de romeiros todos os anos a Juazeiro do Norte, no Cariri, o padre Cícero Romão Batista, conhecido popularmente como Padre Cícero, tem uma extensa trajetória na política cearense. Ele foi fundador da cidade que hoje é centro de peregrinação dos seus fiéis, liderou os juazeirenses por 12 anos como prefeito e, paralelamente, chegou a ser vice-presidente do Ceará.

Mas, na história do santo popular, há um capítulo não escrito. Em 1926, o religioso e político foi eleito — com votação avassaladora — para ser deputado federal. Ele, no entanto, não chegou a efetivamente exercer a função e nem sequer foi à então Capital Federal, o Rio de Janeiro, para tomar posse.

Neste domingo (24), quando os devotos comemoram os 180 de nascimento do cratense — falecido há 90 anos — que fundou Juazeiro do Norte e passou a ser marco da religiosidade cearense, o Baú da Política conta uma história pouco conhecida de sua trajetória política. 

A sequência de acontecimentos que levou o santo popular a ser escolhido pelos eleitores como parlamentar federal começou com uma perda na vida do pároco. Em 8 de março de 1926, um telegrama foi enviado a Juazeiro do Nortes dando conta que Floro Bartolomeu havia morrido no Rio de Janeiro em meio ao tratamento contra sífilis.

A morte de Floro Bartolomeu

Floro era amigo e braço direito de Cícero na política. Ele liderava uma contra-ofensiva na imprensa e entre seus aliados na política para confrontar as acusações de que o “Padim” não era um milagreiro, mas um farsante, e usava sua influência para “melhorar” a imagem de Juazeiro, muito atrelada à pobreza e ao cangaço.

O político também teve um papel fundamental na Sedição de Juazeiro, quando tropas formadas pela população juazeirense e por fiéis se rebelaram contra as forças estaduais e federais, marchando até Fortaleza em defesa das oligarquias cearenses. Foi na esteira da liderança assumida por Floro nesse movimento que ele foi alçado a deputado federal pelos cearenses. 

A morte de Floro ocorreu em 8 de março de 1926. Poucos dias antes, ele tentou novamente liderar tropas, agora para barrar a Coluna Prestes na passagem pelo Ceará. O movimento militar foi um fracasso e o deputado teve uma piora significativa do seu quadro clínico. Ele deixou a linha de batalha para tratar a sífilis no Rio de Janeiro, mas morreu intoxicado no tratamento.

Sem Floro, Padre Cícero surpreende

Com a morte de Floro, a legislação vigente na época impunha a realização de nova eleição. Conforme conta o escritor Lira Neto, na biografia “Padre Cícero: Poder, fé e guerra no sertão”, vários políticos foram até Juazeiro do Norte em busca de apoio do líder religioso e então prefeito da cidade. 

Uma benção do hoje santo popular era um atestado de vitória nas urnas. A indefinição não demorou muito e foi solucionado com uma decisão que pegou muitos de surpresa. Dez dias após a morte do amigo, Padre Cícero anunciou que ele mesmo seria o candidato à cadeira na Câmara Federal. 

Em correspondências, o religioso reconhecia que nunca quis e continuava sem querer ser deputado. “Não podia, entretanto, diante do exposto, escusar-me”, argumentava. Conforme narra Lira Neto, Cícero então deixou a Prefeitura de Juazeiro para ser comandada pelo presidente da Câmara, o vereador José Eleutério de Figueiredo, e seguiu para a disputa eleitoral.

Repercussão da candidatura

Se a liderança do “Padim” era inquestionável e uma candidatura do religioso era vitória certa em Juazeiro do Norte, no restante do Estado e nacionalmente havia uma oposição ruidosa a ele. Esses grupos só ficaram ainda mais insatisfeitos com a decisão do político de suceder Floro.  

Na biografia de Cícero, consta um trecho do editorial do jornal “O Ceará”, de 9 de abril de 1926, com duras críticas a essa investida do religioso na política. 

"Assiste-nos a razão de salientar o ridículo que recairá sobre nós com a recepção do povo carioca ao legendário chefe dos fanáticos. Imagine-mos, por instantes, a cena grotesca que será o desembarque, na capital do país, do novo emissário do povo cearense", escreveu.

Ao mesmo tempo, o santo popular usava suas armas. A historiadora Maria de Fátima Pinho guarda registros da época. O material consta em sua tese, na qual ela pesquisou a história de Padre Cícero.

Um dos recortes é do Jornal do Brasil de 24 de abril de 1926, onde o então candidato a deputado federal agradecia a indicação.

Essa grande honra com que me quizemm distinguir os meus amigos, incontestavelmente superior aos modestos, mas desinteressados e sinceros serviços que tenho prestado ao Estado e a Nação, bem sabe o meu distincto amigo, nunca a solicitei e, francamente, só a acceitarei por uma questão de disciplina e apaziguamento políticos. É que desejo para o Ceará a paz constante e a ordem completa, agora, como nunca, necessárias ao equilíbrio dos negócios públicos. Não têm razão, portanto, os que injusta e tendenciosamente malsinam a minha pessoa, desrespeitando a idade, as boas intenções e a fé patriotica de um brasileiro que nunca mediu sacrifícios para servir o paiz. Ninguém mais do que eu reconhece a minha escassez de merecimento, mas, sem mentir também à própria consciência, ninguém poderá sophismar as minhas constantes provas de amor ao Brasil e a minha desambição pelos cargos políticos. Desejo, pois, que fique bem accentuado não haver eu, jamais, pleiteado o logar com que, neste momento, me pretendem honrar os meus amigos. Sou muito grato, ainda, pelos immerecidos e honrosos conceitos, externados sobre a minha pessoa.

Resultado das urnas

Como a decisão sobre a vaga de Floro na Câmara era dos eleitores cearenses, o resultado das urnas só atestou a força política do religioso, que recebeu uma votação avassaladora. O pleito está registrado na página 1.796 do Diário do Congresso Nacional de 3 de agosto de 1926

"O senhor Albertino Drummond leu parecer sobre a eleição effectuada no 2º districto do Estado do Ceará, para o preenchimento da vaga aberta com o passamento do Sr. Floro Bartholomeu da Costa, concluindo pelo reconhecimento do candidato diplomado, Sr. padre Cícero Romão Baptista. O parecer foi assinado por todos os membros da Comissão e remetido à Mesa da Câmara"

Nos anais da Câmara dos Deputados, consta ainda o registro de que o pleito ocorreu em 6 de junho de 1926, “sem incidente de relevância”.

"Si dividida está politicamente a população eleitoral do Ceará, dessa eleição não veio nada que pudesse mostrar a divisão, foi só um candidato; não houve contra elle, ou contra o trabalho eleitoral nenhuma arguição, protestos ou reclamação. Correu tudo de tal maneira pacífica que apenas pouquíssimos votos foram dados a outras pessoas".

O documento resume ainda a apuração das urnas naquele pleito, que evidenciam o desempenho inquestionável de Padre Cícero nas urnas. Ele recebeu 9.903 votos. O segundo colocado foi José Júlio de Frota Pessôa, com apenas 58 votos. Ubirajára Carneiro apareceu em seguida, com 18. Por fim, Mosenhor Antônio T. Braga, com dois votos.

9.903
votos válidos foram dados a Padre Cícero para deputado federal

Eleito, mas e a posse?

Depois do desempenho eleitoral, as expectativas sobre a ida do primeiro prefeito de Juazeiro do Norte cresceram, mas repletas de dúvidas. À época, Cícero, que tinha 82 anos, já estava com a saúde abalada e a visão escassa por conta da catarata. 

Em registros guardados pela historiadora Maria de Fátima Pinho, isso também ressoava na imprensa. 

Na edição de 4 de agosto de 1926 do jornal “O Paiz”, do Rio de Janeiro, uma nota informa sobre a leitura do parecer de reconhecimento do “‘sr.’ Cícero Romão Baptista como deputado pelo Ceará, na vaga aberta com falecimento do senhor Floro Bartholomeu”. “Muita gente indagou: ‘Quem é esse sr Cícero Romão? Pois o candidato não foi o padre Cícero?”, narra o jornal.

Na edição de 25 de julho de 1926, o Jornal do Brasil também contou sobre a eleição de Cícero. “Já está no Rio o diploma do Padre Cícero. Questão de alguns dias mais e o famoso chefe de Juazeiro estará declarado deputado federal. E ele virá tomar posse da cadeira? É uma pergunta que paira no ar”, dizia.

Os artigos de jornais da época já demonstravam as desconfianças de que o “Padim” iria até a Capital Federal. Soma-se a isso o desinteresse dele pelo cargo, como revelado nas correspondências que trocou com amigos. Outro fator — além do quadro clínico —, era que o mandato legislativo seria curto, somente até o fim do ano. 

Por essa série de motivos, o político acabou nunca indo ao Rio de Janeiro assumir suas funções. 

“É muito provável que ele não tenha viajado para tomar posse por conta da idade, ele tinha 82 anos, já tinha questões de saúde. Também houve uma repercussão muito negativa, com muitas críticas sobretudo na imprensa do Rio de Janeiro”, resumiu Fátima Pinho.

Em nota enviada à reportagem, a Câmara dos Deputados também confirmou que “Padre Cícero Romão Baptista nunca assumiu o mandato até o fim da 33ª legislatura, em 31 de dezembro de 1926”.

De fora da Prefeitura e sem tomar posse como deputado federal, "Padim" não voltou a disputar eleições. No entanto, isso não afetou sua influência como liderança religiosa para milhares de fiéis. Na verdade, só aumentou. Os devotos seguiram visitando Juazeiro do Norte para vê-lo pessoalmente até o seu último dia de vida, em 20 de julho de 1934. Desde então, as romarias passaram a levar multidões cada vez maiores, como demonstração da força e da fé no santo popular. 

O Diário do Nordeste optou por transcrever os trechos de jornais mantendo as normas linguísticas vigentes na época.