O presidente Jair Bolsonaro já afirmou que o resultado de seu exame para detecção da Covid-19 deu negativo e assim manteve contato físico com outras pessoas em passeios e manifestações.
Porém, caso ele venha a mostrar o documento de diagnóstico e seja revelado que ele não falou a verdade, a conduta do presidente poderá ser enquadrada como crime de responsabilidade, que é investigado em processo político no Congresso, além de ser alvo de ações na área penal comum.
A divulgação do exame é objeto de causa em andamento na Justiça Federal. A eventual mentira de Bolsonaro nesse episódio, de forma isolada, configuraria uma violação ao dever de dignidade e decoro do cargo de presidente da República, que é uma das hipóteses de crime de responsabilidade, segundo parte dos especialistas ouvidos pela reportagem.
Porém, há constitucionalistas que entendem que essa conduta, apesar de reprovável, não seria o suficiente para caracterizar o crime de responsabilidade, que segundo a previsão legal pode até levar a um processo de impeachment no Congresso.
Há consenso, porém, de que Bolsonaro não cometeu crime comum na área penal se fez relato inverídico sobre o exame.
Outra discussão ligada ao tema diz respeito ao fato de Bolsonaro ter promovido aglomerações e ter mantido contato físico com outras pessoas desde a realização do exame, desrespeitando as recomendações de isolamento social feitas pelas autoridades de saúde.
Para os criminalistas ouvidos pela reportagem, caso fique comprovado que ele tinha ciência de que estava contaminado e mesmo assim expôs outras pessoas ao vírus, o comportamento também seria passível de ação por delito contra a saúde pública, que teria tramitação no STF (Supremo Tribunal Federal).
Em decisão de quarta (6), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região manteve a determinação judicial que obriga a AGU (Advocacia-Geral da União) a divulgar os laudos de todos os exames realizados pelo presidente para detecção do novo coronavírus. A ação se refere a pedido feito pelo jornal O Estado de S. Paulo.
Após decisão da primeira instância, a AGU havia entregue ao jornal relatórios médicos, não os laudos dos exames. No entanto, o entendimento do TRF-3 foi de que "apenas os próprios exames laboratoriais poderão propiciar à sociedade total esclarecimento".
Nesta sexta-feira (8), a AGU recorreu da decisão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em entrevista ao site Jota nesta quinta-feira (7), o presidente do STJ, João Otávio Noronha afirmou que "não é nada republicano exigir que o presidente dê os seus exames".
Porém, a lei da magistratura veda, em seu artigo 36, que juízes manifestem "opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem".
A fala também foi criticada no meio jurídico pois pode configurar uma antecipação de decisão em relação ao caso.
O presidente fez um elogio público ao ministro recentemente. Em menção a Noronha, durante a posse do ministro da Justiça André Mendonça, no último dia 29, Bolsonaro afirmou: "Confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com vossa excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário".
Caso a revelação do exame do presidente Bolsonaro mostre que ele contraiu a Covid-19 e então mentiu sobre o fato, ele cometeu algum crime, contravenção penal ou outro tipo de ilegalidade?
Segundo a professora de direito constitucional da PUC-SP Luciana Berardi, se Bolsonaro não falou a verdade ele cometeu crime de responsabilidade previsto na lei 1079 de 1950.
Já para o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, caso seja revelado que o presidente mentiu, a conduta compromete a legitimidade do mandatário, mas não é suficiente para enquadramento como crime de responsabilidade. "É terrível do ponto de vista político, é a quebra máxima de confiança do líder da nação, mas acho que não é algo que em si deve ensejar crime de responsabilidade, inclusive para efeitos de impedimento", diz Marques.
Na área criminal, há consenso entre os especialistas no sentido de que uma eventual afirmação inverídica de Bolsonaro sobre o exame, considerada de forma isolada, não configura delito previsto no código penal.
Segundo Marina Coelho Araújo, advogada doutora pela USP e conselheira do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), "a mentira em si, no direito penal brasileiro, não tem relevância".
Na hipótese de Bolsonaro não ter falado a verdade sobre o exame, como pode ser enquadrada juridicamente sua conduta de ter causado uma série de episódios de aglomerações?
Apesar de não haver concordância sobre se a mentira em si seria passível de punição, caso o presidente tenha ocultado que contraiu a doença, os especialistas consideram que ele teria cometido crime ao cumprimentar e se aproximar de diversas pessoas, se sabia que estava doente.
De acordo com Ludmila Groch, presidente de uma comissão de estudos do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), um dos possíveis delitos seria a infração de medida sanitária preventiva e está descrito no artigo 268 do Código Penal, no capítulo reservado ao crimes contra a saúde pública.
Há também quem aponte o artigo 131 do Código Penal, que estabelece como ilegal a prática de ato capaz de produzir o contágio, com o fim de transmitir doença grave de que está contaminado. No entanto, sua aplicação é questionada, pois mesmo que Bolsonaro soubesse estar doente, não é possível afirmar que sua conduta tivesse como finalidade contagiar outras pessoas.
Há especialistas que indicam um possível enquadramento no artigo 267, que descreve o crime de "causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos". Porém, na visão de parte dos especialistas, essa hipótese só se configuraria caso não houvesse casos anteriores da doença no local.
Caso o exame confirme que o presidente de fato não contraiu o vírus, ainda assim ele cometeu algum crime, contravenção penal ou outro tipo de ilegalidade ao provocar aglomerações durante a pandemia?
Para Helena Regina Lobo da Costa, tal ação do presidente somente poderia ser considerada criminosa se, na data em que ela ocorreu, houvesse determinação específica do poder público, naquela localidade, que proibisse aglomerações. Nesse caso, a conduta poderia ser enquadrada no crime de infringir determinação do poder público destinada a impedir propagação de doença.
Já para Marcelo Proença, caso não estivesse doente, os passeios de Bolsonaro poderiam ser considerados como crime de responsabilidade, por quebra de decoro, mas não como crime comum. "Não há uma determinação de proibição de circulação, tem apenas uma recomendação, não estamos em "lockdown". E como é recomendação, a pessoa pode sair à rua", afirmou.