Assunto recorrente na história política brasileira, a autorização para uso de armas de fogo pela população, seja como posse ou como porte, teve seu eixo de discussão mudado nos últimos anos.
Após décadas de incentivo ao desarmamento, a chegada à Presidência de Jair Bolsonaro (sem partido), declaradamente armamentista, inverteu o polo do debate. Desde que tomou posse, ele passou a flexibilizar a concessão de armas para a população. Nesta semana, o assunto ganha novamente protagonismo no debate político nacional.
Na segunda-feira (12), passou a vigorar no Brasil quatro decretos editados pelo presidente que retiram obstáculos para a aquisição de armas e munições no Brasil. No mesmo dia, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), vetou trechos dos dispositivos. Todos os decretos são alvos de questionamentos na Corte sobre a constitucionalidade.
O veredito sobre os documentos editados pelo presidente deve começar a ser dado na sexta-feira (16), quando os magistrados do STF irão julgar a constitucionalidade dos atos. A previsão é de que o julgamento seja concluído no Plenário Virtual até 26 de abril.
Mudanças facilitam acesso a armas
As principais mudanças determinadas por Bolsonaro incluem a ampliação de quatro para seis do número de armas que um cidadão pode possuir. Uma das medidas aumenta a quantidade de munição que pode ser adquirida por colecionadores, atiradores e caçadores.
Os decretos também retiram da lista de produtos controlados pelo Exército itens como carregadores e miras telescópicas.
Pelas novas regras, atiradores e caçadores registrados podem comprar 60 e 30 armas, respectivamente, sem necessidade de autorização. Rosa Weber vetou os trechos mais polêmicos, como o que extingue parte do controle do Exército sobre a compra de munição e acessórios, além do dispositivo que autoriza a aquisição de até seis armas por um cidadão.
De acordo com o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudo da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), a posse de arma permeia a história brasileira, mas o debate no campo político sobre o assunto começa a ganhar força no fim do século passado, já nos anos 1990.
Antes dessa década, conforme levantamento realizado pelo Arquivo do Senado Federal, o assunto foi eventualmente pautado no parlamento brasileiro, mas em resposta a atos pontuais de violência.
Nos tempos da Monarquia
Voltando ainda mais na história, quando o Brasil era comandado por uma Monarquia, as armas eram usadas como forma de intimidação contra o povo. Em 1840, votações organizadas após o anúncio da maioridade de D. Pedro II, por exemplo, foram chamadas de “eleições do cacete”, dado o grau de violência impostos pelas autoridades.
Já na República, em 1925, o então presidente Arthur Bernardes pediu ao Congresso Nacional que proibisse todas as armas de fogo no Brasil, reservando-as exclusivamente para militares e policiais. O apelo, no entanto, não foi atendido.
Início das restrições
Somente em 1831 que a Câmara e o Senado aprovaram leis criminalizando o uso sem licença de “pistola, bacamarte, faca de ponta, punhal, sovela ou qualquer outro instrumento perfurante”.
Na ditadura militar, os responsáveis pelo regime buscavam impor autoridade e usavam para isso o poderio militar, ao mesmo tempo em que tentavam impedir a chegada de armas nas mãos dos “subversivos”, como eram chamados aqueles que combatiam a ditadura.
Nas décadas de 1980 e 1990, há uma mudança nesse cenário. À época,o Brasil entrava na rota de narcotraficantes e o crime organizado começava a se estabelecer no País, principalmente em áreas urbanas.
Conforme aponta o pesquisador César Barreira, outras regiões mantinham ainda práticas mais tradicionais de violência, como a pistolagem.
“São os crimes por encomenda, os matadores de aluguel. Fiz uma pesquisa até a década de 90 e (a pistolagem) teve uma atuação na disputa política, porque entrava na questão da violência, da eliminação do adversário. Nos anos 80, havia uma forte disputa pela terra, havia as lideranças camponesas, temos os casos marcantes de Chico Mendes e Margarida Alves”
À época, o Brasil tinha uma corrida às armas, com pistolas e espigardas sendo vendidas sem qualquer controle em lojas de departamentos e até em anúncios de jornais.
Conforme Barreira, o ponto de virada é quando começam as movimentações em prol do que seria o Estatuto de Desarmamento. A proposta mobilizou políticos e a sociedade civil, que realizaram atos pelas ruas do país.
Estatuto do Desarmamento
Como resultado, em 2003, o Senado e a Câmara aprovaram o documento. Entre as determinações, as armas passaram a ser registradas e controladas. O direito de portá-las ficou restrito a poucas categorias profissionais. A posse e o porte sem licença passaram a ser crimes, com pena de prisão.
Quem tinha arma clandestina em casa pode regularizá-la ou entregá-la ao poder público, para ser destruída, em troca de indenização.
Para César Barreira, há uma relação direta entre o acesso da população a armas de fogo e o aumento da violência. “Se a população está armada, teremos como resultado o aumento da violência”, aponta.
“Antes, tínhamos um predomínio da arma branca, nas décadas de 60, 70 e até 80, então a arma de fogo torna a disputa mais letal. Outra preocupação é porque diminui a faixa etária dos jovens que têm acesso a ela. Em 1999, fiz uma pesquisa que indicava o baixíssimo acesso de adolescentes a armas de fogo. Hoje o cenário é outro”, acrescenta.
O pesquisador afirma que enxerga com preocupação a flexibilização das medidas que restringem o acesso a armas.
“O Estatuto do Desarmamento está em vigor, mas todas essas propostas do presidente estão desidratando esse projeto. É um cenário muito contraditório, porque a política de apreensão das armas continua, mas, em outra frente, há uma flexibilização do acesso. Como os policiais dizem, a sensação é de se estar enxugando gelo.”
"Quero todo mundo armado"
Desde que tomou posse, Jair Bolsonaro já editou 31 atos, entre decretos, portarias e dois projetos de lei que afrouxam o controle de armas e munições no País. Em reunião com ministros, em 22 de abril de 2020, o presidente defendeu o acesso a armas para todos. “Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”, afirmou.
Confira os atos editados pelo presidente:
Decretos e portarias revogadas
- Decreto 9.685 (de 15/01/2019): Facilitava a posse de armas, ao ampliar o rol de justificativas para "efetiva necessidade" de ter o armamento
- Decreto 9.785 (de 07/05/2019): Facilitava o porte de armas para uma série de profissões, incluindo advogados e políticos; permitia a compra de armas com grande poder lesivo e que menores de 18 anos praticassem aulas de tiro só com a autorização de um dos responsáveis
- Decreto 9.797 (de 21/05/2019): Em recuo, o novo decreto proibiu que cidadãos comuns portassem fuzis, carabinas ou espingardas. Foi também estabelecida a idade mínima de 14 anos para a prática de tiro esportivo e a necessidade da autorização de ambos os pais, em vez de apenas um
- Decreto 9.844 (de 25/06/2019): Regulamentava lei, flexibilizando a aquisição, o cadastro, o registro, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição
- Decreto 9.720 ( de 01/03/2020): Alterava o Decreto No. 9.493, de 5 de setembro de 2018, que aprova o novo Regulamento para Fiscalização de Produtos Controlados (novo R-105), ampliando o prazo para sua adoção
- Decreto 9.898 (de 02/07/2019): Alterava novamente o Decreto No. 9.493, que aprova o novo Regulamento para Fiscalização de Produtos Controlados (novo R-105), ampliando ainda mais o prazo para sua adoção
- Portaria 125 (de 22/10/2019): Assinada pelo Comando Logístico do Exército (COLOG), na prática, inseria a restrição de armas portáteis de alma raiada de uso restrito
- Portaria 46 (de 18/03/2020): Do COLOG, estabelecia o Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados (SisNaR), que auxiliaria no controle de armas e foi revogada por Bolsonaro
- Portaria 60 (de 15/04/2020): Do COLOG, definia dispositivos de segurança e de identificação das armas de fogo em todo o país, exportadas e importadas, mas foi revogada por Bolsonaro
- Portaria 61 (de 15/04/2020): Do COLOG, regularia a marcação de embalagens e cartuchos de munição no território nacional, mas foi revogada por Bolsonaro
- Portaria 1.634 (de 22/04/2020): Do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério da Defesa, aumentaria o limite de munições, que passaria a ser de 50 munições por mês (limite anual aumenta de 200 para 600). Foi suspensa por decisão da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo em 10 de junho de 2020
- Resolução (de 08/12/2020): Do Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior do Ministério da Economia, zerava a alíquota de importação para revólveres e pistolas. Foi suspensa pela liminar do Ministro Fachin em 11 de dezembro de 2020 (ADPF 772)
Decretos e portarias em vigor
- Decreto 9.845 (de 25/06/2019): Dispõe sobre a aquisição, o cadastro, o registro e a posse de armas de fogo e de munição. Foi escrito após críticas sobre os primeiros decretos de armas assinados pelo Planalto
- Decreto 9.846 (de 25/06/2019): Estabelece regras e procedimentos para o registro, o cadastro e a aquisição de armas e de munições por caçadores, colecionadores e atiradores. Foi escrito após críticas sobre os primeiros decretos de armas assinados pelo Planalto
- Decreto 9.847 (de 25/06/2019): Dispõe sobre a aquisição, o cadastro, o registro, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição e sobre o Sistema Nacional de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas
- Decreto 10.030 (de 30/09/2019): Novo Regulamento de Produtos Controlados
- Portaria 1.222 (de 12/08/2019): Do Comando do Exército, dispõe sobre parâmetros de aferição e listagem de calibres nominais de armas de fogo e das munições de uso permitido e restrito
- Portaria 126 (de 22/10/2019): Do COLOG, revoga a portaria 036 -DMB, de 1999, sobre comércio de armas; revoga a portaria 01 D-Log, 2006; revoga a portaria 021 COLOG, 2009; e dispõe sobre a aquisição, o registro, o cadastro, a transferência, o porte e o transporte de arma de fogo; e a aquisição de munições e de acessórios de arma de fogo por militares do Exército, em serviço ativo ou na inatividade
- Portaria 136 (de 08/11/2019): Do COLOG, revoga a portaria 125; artigos 11 e 12 modificam as características das armas que CACs podem possuir. A revogação da portaria 125 acaba com a restrição de armas portáteis de alma raiada de uso restrito. Ficam restritas apenas as armas de uso proibido, automáticas e não portáteis. Na prática, fuzis (arma portátil, de alma raiada, que pode ser de repetição, semi ou automática), na versão repetição ou semi-automática, estão liberados para caçadores e atiradores
- Portaria 137 (de 08/11/2019): Do COLOG, altera a portaria 126, especificamente sobre aquisição por militares do Exército (ativos e inativos)
- Portaria 412 (de 27/01/2020): Do Ministério da Justiça e da Defesa, aumenta limite anual de munições que podem ser adquiridas de 50 por arma registrada para 200
- Portaria 150 (de 05/12/2019): Do COLOG, dispõe sobre normatização administrativa de atividades de colecionamento, tiro desportivo e caça (incluindo permissão para porte de arma curta municiada para os colecionadores, os atiradores e os caçadores sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições; para abate autorizado de fauna, etc., e permissão para tiro desportivo para adolescentes de 14 a 18 anos mediante autorização de responsáveis legais)
- Portaria 62 (de 17/04/2020): Do COLOG, revoga as portarias 46, 60 e 61
- Portaria 389 (de 13/07/2020): Do Ministério da Justiça, define o tipo de arma de porte semi automática para uso da Força Nacional, e os critérios técnicos mínimos para aquisição e emprego, incluindo medidas que melhoravam a marcação dessas armas, o que ajuda no controle de armas
- Portaria 423 (de 22/07/2020): Do Ministério da Justiça, altera a Portaria 389 e retira as exigências de marcação interna e da chipagem das armas
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Projetos que aguardam aval do Congresso
- Projeto de Lei 3723/2019 (de 26/06/2019): Aprovado pela Câmara dos Deputados em 5 de novembro de 2019. Acordo possibilitou que o projeto fosse reduzido a mudanças na regulação dos CACs. Versão aprovada na Câmara prevê fim da marcação das munições das forças de segurança pública. Aguardando Apreciação pelo Senado Federal
- Projeto de Lei 6438/2019 (de 12/12/2019): Altera a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) e define crimes. Aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e na Comissão de Segurança Pública; e aguardando parecer do relator na Comissão de Relações Exteriores
Decretos assinados por Bolsonaro que entraram em vigor nesta semana
- Decreto 10.627: Afasta a fiscalização do Exército sobre a venda e o uso de máquinas de recarga de munição e seus projéteis, viabilizando, assim, que as pessoas produzam a sua própria munição, sem qualquer controle de quantidade e sem a possibilidade do seu rastreio
- Decreto 10.628: Aumentou para cidadãos comuns a possibilidade de adquirir até seis armas de fogo de uso permitido (com o Decreto 9.845/19 era de quatro o limite)
- Decreto 10.629: Passa a aceitar que caçadores, colecionadores e atiradores comprovem aptidão psicológica com laudo elaborado por qualquer psicológico com registro profissional ativo em Conselho Regional de Psicologia (antes se exigia psicólogo do quadro da Polícia Federal ou por esta credenciado).Também afasta a necessidade de autorização do Comando do Exército para a compra de armas nos limites estabelecidos (60 armas para atiradores, 30 para caçadores e 10 para colecionadores). Permite ainda que menores a partir de 14 anos usem arma de fogo cedida por qualquer outro desportista para praticar tiro esportivo
- Decreto 10.630: O porte de arma passa a ter validade em todo o território nacional e ser sem "caráter excepcional". Agora, o porte também abrange até duas armas de fogo simultaneamente com respectivas munições e acessórios
Acesso a armas
Mesmo com vetos e revogações, os atos do presidente para desidratar o Estatuto do Desarmamento já aparecem em números. Conforme revelou reportagem do Diário do Nordeste, os registros de armas de fogo novas para cidadãos vêm em crescimento no Ceará.
Entre janeiro e março deste ano, o Estado já registrou 308 armas legais. Em igual período do ano passado, foram registradas 133. O aumento, de um ano para outro, é de 131,5%. Os dados foram fornecidos pela PF.
Os registros de armas de fogo para civis teve um crescimento de 90% em 2020, se comparado ao ano anterior. Foi o maior número já registrado pela Polícia Federal (PF).
Ao todo, foram registradas 179,7 mil armas no ano passado. Desse total, 70% foram para “cidadãos comuns”. A quantidade de portes de armas também cresceu, passando de 9,2 mil, em 2019, para 10,4 mil, em 2020.