A semana que marcou o início dos depoimentos na CPI da Covid do Senado Federal trouxe os dois senadores cearenses entre os titulares da Comissão em posições e atuações distintas. Eduardo Girão (Podemos), uma das vozes mais ouvidas presencialmente no Plenário 3, reforçou o papel do qual declaradamente tenta se desvencilhar, o de governista, levantando temas que se alinham aos discursos do Governo Bolsonaro.
Tasso Jereissati (PSDB) se manteve, com participação remota e menos frequente, questionando atos e omissões do Governo Federal, do início da pandemia até esta semana.
As recentes declarações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a possibilidade de a pandemia ser artifício de uma “guerra química” por parte dos chineses repercutiram bastante na Comissão. Tasso apresentou requerimento para que um representante da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vá à CPI esclarecer se existe algum fundamento na acusação.
Já Girão, diante da incisividade do relator Renan Calheiros (MDB-AL) ao perguntar ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, sobre o assunto China, entre outros, direcionou protestos à postura do colega de Casa e não ao Governo.
Divergências com outros senadores a respeito de temas como “tratamento precoce” e descentralização das investigações levaram Eduardo Girão a situações desconfortáveis e até bate-bocas com colegas.
1º dia - aglomerações e tratamento precoce
Na terça-feira (4), dia em que a CPI recebeu o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, Girão apresentou requerimento para que estados e capitais enviem uma série de documentos à Comissão, com informações sobre folhas de pagamentos, contratação de oxigênio, aquisição de EPIs e insumos.
O objetivo é verificar possíveis desvios ou aplicações indevidas de recursos da União por parte de gestores estaduais e municipais. O senador cearense também cobrou que as convocações para depoimentos intercalem representantes do Governo Federal e de estados e municípios.
Durante o interrogatório de Mandetta, Tasso Jereissati questionou os motivos para o Governo não ter adotado nenhuma campanha de combate ao coronavírus, indo de encontro “a todos os países do mundo” e citou as “mais de 60 aglomerações” de Bolsonaro durante a pandemia, questionando o ex-ministro se ele divergia das diretrizes sanitárias mundiais e do próprio Ministério da Saúde “por impulso, por não acreditar e gostar de estar perto do povo, ou se tinha alguma ideia por trás disso”.
Henrique Mandetta citou o deputado federal e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), como um dos aconselhadores de Bolsonaro na perspectiva negacionista da pandemia e na crença de que a “imunidade de rebanho” era uma realidade inevitável para os brasileiros, mesmo implicando necessariamente em altos índices de infecções e mortes.
“Se eu alertei o presidente? Alertei”, disse Mandetta, ressaltando que a manutenção daquele modo de “enfrentamento” da pandemia poderia gerar “colapso do sistema público de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população brasileira”.
Aglomerações
Eduardo Girão também citou as várias aglomerações do presidente da República. Mais uma vez atribuindo a si postura “independente”, qualificou de “equivocada” a postura de Bolsonaro. O objetivo, no entanto, era colocar o ex-ministro em saia justa, ao, logo em seguida, perguntar sobre duas situações em que Mandetta foi visto sem máscara em aglomerações. “Isso foi um erro ou hipocrisia?”, indagou.
“Nós trabalhávamos com um conceito de biossegurança forte”, respondeu Mandetta, afirmando que, no dia em que se despediu dos servidores do Ministério da Saúde, todos estavam testados. Ainda assim, fez um mea-culpa. “Eu não deveria, mas era muita emoção naquele momento”.
Na segunda situação, em novembro, justificou que era período de eleições municipais e todos os municípios estavam com suas regras sanitárias estabelecidas, e que elas foram seguidas.
Girão também perguntou por que o ministro não recomendou expressamente que o Carnaval do ano passado não fosse realizado, quando já havia reconhecimento da Organização Mundial da Saúde de que a pandemia era uma realidade.
A OMS, no entanto, amparou a postura do Governo àquela altura, de acordo com Mandetta: “A OMS não mandou fechar voos da China. As feiras de negócios continuaram a acontecer. Expressamente, ela dizia que não era para fazer restrição de movimentação. Não havia nenhum caso registrado no Brasil”, justificou.
Temas frequentes
Durante o depoimento de Mandetta, Girão citou a diferença de preços entre os respiradores contratados pelo Governo Federal e pelo Consórcio Nordeste, episódio atualmente investigado pelo MPF. Requerimentos de informações sobre o assuntos foram aprovados na CPI. O senador cearense quer ouvir o depoimento do presidente do Consórcio Nordeste, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT).
O senador questionou ainda as críticas ao “tratamento precoce” e disse que a ciência está “dividida” em relação ao assunto. Perguntou se Mandetta não considera que errou ao não ter recomendado o tratamento e se ele não teria “remorso” por isso.
“Não, senador. Aqui é ciência. Aqui é estudo”, respondeu Mandetta, que apontou não haver nenhuma evidência científica que ampare a cloroquina ou a ivermectina, citando ainda outros tratamentos sem comprovação, que viraram inclusive alvo de chacota, como “ozonioterapia intrarretal” e cloroquina administrada em nebulização de comprimidos com talco.
2º dia - falta de alinhamento e respiradores
A resposta mais dura aos defensores do tratamento precoce, porém, viria do senador Otto Alencar (PSD-BA), já na quarta-feira (5), quando o interrogado na CPI era o ex-ministro Nelson Teich. A intervenção veio após fala do senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS), mas serviu como recado aos demais.
“Em uma doença como a Covid-19, 90% a 95% cursam assintomático, leve ou moderado. Se tomar um copo de água é a mesma coisa que tomar um comprimido, 10 ou 20 de hidroxicloroquina. A água é melhor porque não dá efeito colateral. Como 90% a 95% das pessoas cursam dessa forma, não custa nada um charlatão receitar hidroxicloroquina, o doente ia ficar bom de qualquer jeito e ele diz que foi a hidroxicloroquina que salvou”, disse Otto Alencar, que é médico.
Antes de Heinze, Girão já havia falado sobre o uso de “medicamentos que viraram palavrão”, questionando Teich sobre a importância da autonomia médica.
“A autonomia médica assume que todo médico tem o conhecimento máximo sobre tudo que ele faz. Se isso não é verdade, a autonomia médica tem que ser avaliada e acompanhada, porque quando você permite que uma pessoa utilize de forma inadequada os recursos, eu acho que de alguma forma você pode estar prejudicando a sociedade”, rebateu Teich.
Problemas de comunicação
A Nelson Teich, Tasso Jereissati fez duas perguntas, relacionadas a problemas de comunicação e falta de alinhamento entre Ministério da Saúde e Presidência da República. Citou a demissão dois ministros “médicos e técnicos”, diante dos embates entre ciência e negacionismo, e citou a surpresa do ex-ministro ao saber pela imprensa da decisão de Bolsonaro de reabrir uma série de atividades no País.
Questionou também a redução do número de coletivas por parte do Ministério. Teich disse ter tentado trazer tom mais informativo e técnico do que político nas coletivas.
“Em momento algum, a informação deixou de existir, e as coletivas realmente aconteceram em uma frequência menor, mas nunca com qualquer objetivo de blindar ou de tirar informação da sociedade”, explicou.
Sobre a falta de alinhamento, respondeu que buscou a “condução correta” e que teve posição clara em relação a distanciamento e máscara, mas que não obteve apoio do Governo Federal.
Insistência com os respiradores
Na quarta-feira, Eduardo Girão retornou ao que vem chamando de “escândalo” dos respiradores, assunto interessa aos governistas na “guerra de narrativas”, pois pressiona governadores e prefeitos.
Ainda tirando o foco do Governo Federal, o senador repetiu que “bilhões e bilhões” foram transferidos a estados e municípios pela União. Retornou a outro tema de repercussão local: o fechamento dos hospitais de campanha, a exemplo do construído no estádio Presidente Vargas, em Fortaleza.
Teich alegou se tratar de uma “discussão de estratégia”.
“O ideal é que você realmente desativasse algumas coisas que estivessem ociosas, mas que você tivesse condição de reativá-las em caso de uma necessidade”, disse o ex-ministro.
Bate-boca
No final da sessão, Girão voltou a questionar o maior foco da CPI no Governo Federal, dizendo se tratar de “uma fraude contra o povo brasileiro”. O presidente da Comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), perdeu a paciência com o cearense e subiu o tom.
“Vossa excelência vem aqui de manhã prescrever remédio como se fosse médico, e agora o senhor volta aqui só para ofender a gente?”, disse Aziz.
“O senhor está me acusando de prescrever? Eu não sou nem médico!”, respondeu Girão. “O senhor estava prescrevendo cloroquina aqui, rapaz!”, retrucou Aziz. O clima era de animosidade. Girão, mais uma vez, negou estar prescrevendo medicamentos, e disse ter feito “perguntas respeitosas”, apenas.
“Se existe o TCU, que é um órgão auxiliar do Legislativo, para ver contratos federais, por que que a gente não pode ver aqui?”, questionou o cearense, antes de Aziz passar a palavra à senadora Zenaide Maia (Pros-RN).
3º dia - “Guerra química” e municípios
Na quinta-feira (6), terceiro dia de oitivas, o senador Tasso Jereissati foi o primeiro a ter a palavra, após a abertura da sessão. Tasso avaliou as declarações dadas por Jair Bolsonaro, na quarta-feira (5), de que a pandemia poderia fazer parte de uma “guerra química” provinda da China.
“Uma das declarações mais graves e sérias que eu já vi um presidente da República, no Brasil, fazer”, segundo o tucano.
Tasso apresentou requerimento para convidar um representante da Abin à CPI, para explicar se existe algum indício de guerra química na pandemia. “Se não existe, é um verdadeiro boicote intencional à compra de vacinas ou envio de vacinas por parte da China. Nós estamos fazendo uma injúria e uma calúnia contra o nosso maior fornecedor de vacinas neste momento”, lamentou o senador.
Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, questionou o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, sobre a insistente rixa diplomática de Bolsonaro em relação ao país asiático. “Podemos acreditar que esse tipo de declaração acabou ontem e que não vai continuar? O senhor, como ministro, como representante da área de saúde, pode nos afiançar isso, ou vamos ter eternamente que conviver com essa condição?”.
Queiroga respondeu que Bolsonaro está apoiando a campanha de vacinação e que “não poderia fazer juízo de valor sobre a declaração do presidente ou de qualquer brasileiro. Isso é uma questão dele”, disse.
Dirigindo-se a Renan, que também fez críticas ao ritmo da vacinação e repetidas perguntas a Marcelo Queiroga sobre ele concordar ou não com a postura do presidente da República em relação à cloroquina, Eduardo Girão disse que o relator “induziu” e “intimidou” o ministro, afirmando que o senador alagoano se comportava como “promotor de acusação”, comparando a postura dele em relação ao atual ministro e aos anteriores.
“Isso aqui não é tribunal de filme americano”, Girão ouviu como resposta de um dos colegas.
Municípios e “outros governos”
Na primeira pergunta que fez a Marcelo Queiroga, Girão não trouxe assunto da competência do atual ministro. O foco foi para os municípios. Perguntou se as eleições de 2020, quando Queiroga ainda não ocupava o cargo, podem ter ajudado a disseminar a segunda onda do coronavírus no Brasil.
Queiroga citou que não só as eleições, mas as festas de fim de ano, o Carnaval e outros eventos de aglomeração foram sim fatores determinantes para a propagação do vírus.
O senador voltou a falar dos “bilhões e bilhões” repassados pelo Governo Federal, questionando o controle da aplicação dos recursos, mais uma vez citando operações da Polícia Federal, sem mencionar nenhuma em específico.
Queiroga deixou claro que é um assunto para os órgãos de fiscalização e controle. “Existem, dentro do sistema de saúde, mecanismos de auditoria, para avaliar, não só a realização de procedimentos, como a aplicação desses recursos, e as instituições de controle do Estado, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União”, citou.
Mesmo estando diante do atual ministro da Saúde, Girão perguntou a Marcelo Queiroga sobre a falta de prioridade, na avaliação dele, que “governos anteriores” deram à Saúde Pública, fazendo críticas direcionadas às administrações petistas e chegando a sugerir que empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) a países como “Cuba e Venezuela” possam ter prejudicado o atual financiamento à saúde.
Queiroga evitou entrar em atritos políticos e deu resposta generalista em defesa do SUS. “O sistema público de saúde tem que ser prioridade, a Constituição assim assegura”, respondeu o ministro.
Foco em vacinas na próxima semana
Na próxima semana, a CPI da Pandemia fará audiências que voltam as atenções para o tema da chegada de vacinas ao Brasil.
Na terça-feira (11), a comissão recebe Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa. Uma das expectativas é sobre os esclarecimentos à não autorização da Anvisa à vacina russa Sputnik V. Só o Ceará prevê a compra de 5,8 milhões de doses desse imunizante.
Na quinta-feira (13) a CPI receberá Marta Díez, presidente da subsidiária brasileira da Pfizer. A empresa farmacêutica recentemente entregou cerca de 1 milhão de doses ao Brasil, mas já negociava com o governo brasileiro desde o ano passado. Segundo relatos da companhia, o governo rejeitou as primeiras ofertas.
Também sobre as negociações com a Pfizer, a CPI ouvirá na quarta-feira (12) o ex-ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República Fábio Wajngarten, que deixou o cargo no início de março.
O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello será ouvido pela CPI no próximo dia 19. Seu depoimento seria na terça-feira, mas foi adiado após ele informar que teve contato com casos confirmados de Covid-19.
Novas convocações
A CPI continuará votando requerimentos durante a semana. O relator, senador Renan Calheiros, apresentou pedido de convocação da médica cearenses Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde. O documento atribui a ela a defesa de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19.
Após requerimento de convocação à CPI da Covid, Mayra Pinheiro diz que é "dever comparecer".
Os senadores também querem convocar titulares de outros ministérios — como Economia, Casa Civil, Ciência e Tecnologia, Justiça, Relações Exteriores e CGU — e governadores estaduais. Por enquanto, a CPI apenas requisitou informações dos órgãos e dos estados, mas não chamou nenhuma dessas autoridades para prestar depoimento.