A publicação de dois manifestos assinados por grupos antagônicos de médicos cearenses, no último mês, expôs uma acentuada divisão da categoria. Com tom patriótico e até ufanista, o “Manifesto dos médicos cearenses em prol do Brasil” declarava apoio a Jair Bolsonaro (sem partido), enquanto o “Manifesto em defesa da vida, da Ciência e do SUS” firmava repúdio a uma série de ações, falas e omissões do presidente durante a pandemia.
Desde então, os documentos continuam a somar assinaturas, e as divergências dão tom ideológico a discussões que deveriam se limitar à seara técnico-científica. A publicação das listas era apenas um dos diversos capítulos de tensões e desgastes entre os profissionais da saúde.
Ontem (31), o “Coletivo Rebento - Médicos em defesa da ética”, responsável pela nota antigoverno, publicou mais um manifesto, dessa vez direcionado ao Sindicato dos Médicos do Ceará (Simec), cobrando da entidade posicionamento sobre a crise sanitária, especialmente em relação à postura do Governo Federal, para o qual a publicação aponta “alinhamento cego” do sindicato.
O Simec respondeu se dizendo “apartidário e independente” e apontando “má fé” em alguns argumentos dos colegas.
Sobre o assunto, a reportagem ouviu representantes dos grupos e especialistas em Saúde Pública e Ciência Política, e reuniu apanhado geral do posicionamento das entidades médicas. A falta de consenso e direcionamento, assim como a politização de medicamentos e protocolos, mostram-se como obstáculos em diversos níveis para o enfrentamento da crise sanitária.
Um manifesto “apolítico”
Apesar do conteúdo eminentemente político e de apoio irrestrito a Bolsonaro, o manifesto “em prol do Brasil” tenta se colocar como apolítico. O médico idealizador da lista, que preferiu não se identificar, segundo ele por questões de privacidade, explica.
“A gente deu uma resposta porque já não aguentava mais tanta politização. Nós não somos um grupo político. Ninguém tem político de batismo nem nada, mas a gente chegou a um ponto que, de tanto apanhar, precisava dar uma resposta”
Ele fez ainda referência ao comando do Ministério da Saúde.
“Desde o início da pandemia que os caras (opositores) estão torcendo contra. Torceram contra o (Luiz Henrique) Mandetta, torceram contra o (Nelson) Teich, torceram contra o (Eduardo) Pazuello. Esse ministro mal assumiu e já estão criticando”, protestou em referência a Marcelo Queiroga, empossado no cargo na terça-feira (23), uma semana após o anúncio de substituição.
Questionado sobre o teor de culto personalista de alguns trechos do manifesto (como o que afirma que Bolsonaro “foi o único Presidente da República que, literalmente, derramou o próprio sangue pelo Brasil”), o médico justifica.
“Existe um discurso de ódio contra o Bolsonaro desde o primeiro dia que ele colocou o pé lá no Planalto. (Chamam de) ‘Genocida’, ‘capiroto’, ‘satânico’, ‘ditador’. Não é por aí. Ele merece respeito. Ele teve mais de 57 milhões de votos. Aquela nossa afirmação é uma forma de a gente neutralizar essa pseudo-imagem do presidente como genocida”, declarou.
Vacinação contra Covid-19 e tratamento precoce
O documento também tenta reunir argumentos favoráveis a Bolsonaro em relação ao motivo que mais centraliza críticas ao presidente nos últimos meses, as vacinas, apontando o Brasil como o 5º País que mais vacina no mundo.
Em números proporcionais à população, no entanto, o País ocupa a 58ª posição, segundo a plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, além de ter atualmente os piores indicadores do mundo em mortes e novos casos.
Outro ponto polêmico é a defesa do chamado “tratamento precoce”, que tem como carros-chefes medicamentos com ineficácia comprovada.
O médico organizador do manifesto afirma que “em uma pandemia, é preciso lutar com as armas que se tem” e questiona por que apenas a hidroxicloroquina e a ivermectina foram “politizadas”.
“Você pode até ter hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco e vitamina D nos primeiros cinco dias de doença. Depois do 5º dia, tem o antibiótico, tem a pulsoterapia com corticóide, tem o anticoagulante, tem a colchicina, tem a fisioterapia respiratória”, explica, citando outros procedimentos que vêm sendo adotados por colegas, segundo ele, com bons resultados.
Médicos pediram para sair da lista
A repercussão do manifesto, ainda na semana da publicação, fez com que médicos solicitassem a retirada de seus nomes da lista.
Pelo Whatsapp, circulava áudio da secretária da Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, tentando dissuadir colegas.
“Alguns colegas médicos estão me ligando, perguntando da possibilidade de retirar o nome dessa nossa carta, porque estão com medo de serem perseguidos. O que a gente tem que deixar bem claro entre nós é que nós somos líderes, nós somos autônomos e se pessoas como nós, que têm autonomia, que têm capacidade de trabalhar onde quiserem, de não depender de governo algum, tiverem medo de enfrentar o que está posto hoje no Brasil, no Ceará, a gente encerra de vez todas as possibilidades de a gente continuar livre e independente”, dizia a ex-presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará no grupo “Médicos pelo Brasil”.
Segundo Mayra, “as pressões vêm de membros do mesmo grupo ideológico que ataca sistematicamente o Governo Federal e crítica o tratamento precoce”. Entretanto, ela afirma que “nenhum nome foi retirado, e a lista só aumenta a cada dia”.
O médico idealizador da lista relatou ter deixado um dos hospitais particulares em que trabalhava, alegando que as divergências políticas levaram a um ambiente de trabalho conturbado.
O manifesto de médicos bolsonaristas já reuniu 647 assinaturas.
Do outro lado do discurso
Reunindo, até esta quinta-feira (1°), 1.113 assinaturas, o “Manifesto em defesa da Vida, da Ciência e do SUS” aponta sobre o Governo diversos atos e omissões que fazem com que o Brasil seja considerado hoje o epicentro da pandemia no mundo.
O documento também reúne falas e atos desrespeitosos que Bolsonaro vem acumulando desde o ano passado, entre elas declarações como “E daí? Não sou coveiro!” e “Chega de frescura, de mimimi!”, ao se referir a vítimas da Covid-19.
“O Governo Federal boicota, desde o início, as medidas de combate à pandemia. Poderíamos até dizer que por incompetência, mas não, é justamente esse o projeto”, diz trecho da publicação.
Os médicos que assinam o manifesto rebatem a versão de que são eles a politizar a pandemia, discurso apontado pelo grupo como “superficial e falso”.
“A população está ciente e atenta a essas enormes contradições. No falacioso sentido pejorativo que usam, de criminalização da política, muitos dos que dizem ser ‘contra politizar a pandemia’, na verdade politizam a pandemia, no sentido pejorativo de que falam, o tempo todo. Principalmente pelo apoio e pelo alinhamento cego a um Governo Federal que já atraiu o repúdio da população brasileira e da comunidade internacional”, disse o grupo em nota.
O Coletivo Rebento acusa Bolsonaro de agir “desde o começo da pandemia, contra posturas que salvam vidas, fazendo propaganda da falta de cuidado, de medicamentos que não funcionam para a doença, anunciados como ‘tratamento precoce’, o que não existe; questionando medidas essenciais como o uso de máscaras, o isolamento social, a vacinação”.
Em outro trecho da nota, o grupo volta a atacar o “tratamento precoce”. “O uso indiscriminado de cloroquina, ivermectina, azitromicina, vitamina D e zinco durante a atual crise não encontra paralelo em nenhum outro país. Não é recomendado por nenhuma entidade séria e, atualmente, não passa de uma grande farsa. Tal conclusão se dá pela observância ao que há de mais relevante e publicado na literatura científica”.
Prejuízos na rotina médica
Um dos médicos signatários do manifesto, que preferiu não se identificar, segundo ele, por temer represálias, relata dificuldades no dia a dia, incitadas pela propagação do discurso de Bolsonaro. Ele tem trabalhado em duas unidades que prestam atendimento a pacientes com Covid-19 em Fortaleza e Região Metropolitana. Ele
“Acontece com certa frequência. Alguns insinuam que você está ocultando alguma coisa, como se houvesse uma bala de prata contra o vírus. Ontem mesmo, um indivíduo positivo para Covid, com sintomas leves, ficou revoltado no atendimento porque eu não estava receitando para ele o mesmo ‘kit covid’ que foi receitado para a esposa”, conta o profissional.
Segundo o médico, consultas em que a pauta surge costumam ser mais demoradas, já que é preciso explicar a comprovada ineficácia de alguns medicamentos cobrados.
“Se um paciente nunca esteve pré-disposto a fazer um quadro grave e toma a ivermectina, ele sai dizendo para as pessoas que foi salvo pela ivermectina, assim como ele poderia fazer com calabresa ou Fanta Uva”, rebate o médico, que desabafa: “A gente já está tendo que atender um número gigantesco de pacientes e, ainda por cima, tendo que repetir a mesma história não sei quantas vezes no mesmo dia”.
"Presidencialismo de confrontação”
Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), de São Paulo, o cientista político Rodrigo Prando afirma que, no Brasil, as crises sanitária, econômica e social são agravadas por uma “crise de liderança”.
“É a ausência de uma liderança que tenha sido capaz de construir uma estratégia de enfrentamento da pandemia, de articular junto a governadores e prefeitos uma forma de buscar enfrentar a situação e levar inclusive uma mensagem de esperança, de solidariedade aos milhares de brasileiros que tiveram seus entes queridos doentes ou mortos”, argumenta.
Segundo Prando, o Governo empreende muitos esforços na chamada “guerra cultural” e no que ele chama de “presidencialismo de confrontação”, para manter a base “coesa e resiliente”, mas falha ao apresentar soluções concretas para os problemas.
“O Bolsonaro e os bolsonaristas têm no seu DNA a confrontação, no entanto deixam muito a desejar no quesito governança, a se mostrar que nós estamos no quarto ministro da Saúde, algo inimaginável em qualquer país que tenha levado a situação da pandemia de forma séria”, critica.
Cenário local
O pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Cleyton Monte afirma que, apesar de ter se acentuado, com a chegada de Bolsonaro ao poder, o processo de politização de debates que deveriam ser técnico-científicos, já se mostrava anteriormente.
Ele cita como exemplo o caso dos médicos cubanos vaiados em Fortaleza, ao chegarem para integrar o programa Mais Médicos, em ação que se tornou simbólica, em 2013 da carreira de Mayra Pinheiro que, no ano seguinte, foi eleita presidente do Sindicato dos Médicos no Estado.
“Esse grupo foi fundamental para a vitória do presidente, no Brasil todo. Figuras como a Dra. Mayra fazem parte, dão sustentação ao Ministério da Saúde, então não é do interesse desse grupo fazer uma autocrítica, de que o governo errou, se omitiu”, afirma o cientista político.
Entidades Médicas
No início de março, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou posicionamento sobre as medidas contra a Covid-19, mas o tom é moderado e generalista. Além de agradecer os esforços da categoria, defende ampla assistência, vacinas, máscaras, higienização e distanciamento social, ainda com as ressalvas comumente utilizadas por quem é crítico das medidas de isolamento.
“A adoção de medidas restritivas de caráter local pode reduzir, momentaneamente, a pressão da demanda sobre o sistema de saúde, como tentativa de evitar o colapso. Por outro lado, podem também gerar consequências graves e de efeito duradouro para a sociedade, como o fechamento de empresas, desemprego e surgimento de doenças mentais em adultos, jovens e crianças”, diz um dos pontos.
Não há menção do CFM ao uso de medicamentos sem eficácia comprovada. No ano passado, atendendo solicitação do Governo Federal, o Conselho publicou parecer autorizando recomendação de cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes com sintomas de leves a críticos, mesmo reforçando que não existem comprovações científicas sobre o uso dos medicamentos.
A publicação isenta de infração ética o profissional que assim o fizer, destacando apoio à autonomia do médico, que deve ser obrigado a informar o paciente sobre a ausência de trabalhos científicos que comprovem os benefícios das drogas, assim como explicar os possíveis efeitos colaterais decorrentes do uso.
No último dia 25, o presidente do CFM, Mauro Ribeiro, publicou artigo em que voltou a defender a autonomia do médico e do paciente, afirmou haver uma “politização criminosa” da pandemia e apresentou uma série de questões que, segundo ele, ainda representam dúvidas para a categoria em relação à Covid-19, entre elas o tratamento precoce.
“Existem na literatura médica dezenas de trabalhos científicos mostrando benefício com o tratamento precoce com as drogas citadas. Outros tantos apontam que elas não possuem qualquer efeito benéfico contra a covid-19. Em outras palavras, a ciência ainda não concluiu de maneira definitiva se existe algum benefício ou não com o uso dessas drogas”, disse em trecho do artigo.
As discordâncias em relação ao uso da cloroquina foram determinantes para as saídas dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.
Desde o ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu os estudos com o medicamento, que, por exemplo, teve autorização de uso revogada pela FDA (agência técnica dos Estados Unidos equivalente à Anvisa). No caso da ivermectina, a própria farmacêutica fabricante, MSD (Merck Sharp and Dohme), publicou comunicado afirmando não haver evidências de eficácia no tratamento da Covid-19.
“Kit Covid”
Na terça-feira (23), a Associação Médica Brasileira (AMB) publicou boletim com uma série de recomendações e esclarecimentos, se posicionando também em relação aos fármacos do chamado “Kit Covid”. Inicialmente, o documento foi subscrito pelas 27 associações federadas, entre elas a Associação Médica Cearense (AMC), e por 54 sociedades de especialidades médicas.
O teor, porém, ainda estava em discussão, e divergências, especialmente nos itens que tratam da não recomendação de medicamentos, fizeram a versão final do texto perder muitas assinaturas. Das federadas, apenas a Associação Paulista de Medicina se manteve signatária, enquanto 41 sociedades de especialidades retiraram seus nomes da publicação.
Dois dos 13 itens da carta foram os principais objetos de divergência. O item 7 afirma que deve ser “banida” a utilização de drogas sem eficácia científica comprovada como “hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina”, entre outras, “quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença”.
O ponto seguinte preconiza que “o uso de corticoides e anticoagulantes devem ser reservados exclusivamente para pacientes hospitalizados e que precisem de oxigênio suplementar, não devendo ser prescritos na COVID leve, conforme diversas diretrizes científicas nacionais e internacionais”.
A Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica (CIPE), por exemplo, emitiu nota esclarecendo os motivos de ter retirado a assinatura do documento da AMB.
“Discordamos dos seguintes itens, por gerarem polêmica, não serem uma unanimidade entre nossos associados e irem de encontro à autonomia do médico. Item 7: vai politizar a discussão sem necessidade; item 8: também é polêmico. Muitos profissionais qualificados prescrevem corticoide e anticoagulante em pacientes ambulatoriais, que entram na fase 2, com quadro moderado, que, se bem monitorados, não necessitam de internamento”, diz trecho da publicação. “Se forem revisados estes dois itens, os demais consideramos adequados”, conclui.
A reportagem procurou o Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec), cobrando posicionamento da entidade a respeito de questões como “tratamento precoce” e medidas de isolamento. O Cremec, no entanto, não se pronunciou.
“Omissão”
Doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ligia Bahia aponta “omissão” da entidade responsável por fiscalizar e normatizar a atividade médica no País.
“O CFM tem sido cúmplice e consentidor passivo de políticas propositalmente direcionadas a aumentar o número de mortes. A ideia que implicitamente defendem é a da imunidade de rebanho, um horror no plano ético e um absurdo em termos científicos. Nunca na história da humanidade houve essa conformidade com mortes que podem ser evitadas”, lamenta.
Segundo Ligia, a falta de planejamento e coordenação foi fundamental para chegarmos ao atual quadro. “O Brasil não fez lockdown, não usou testes massivamente; não está estimulando o uso de máscaras, especialmente de boa qualidade. Não organizou a rede de serviços e não planejou a aquisição de vacinas e a campanha de vacinação”, enumera.
“Além disso, esse clima de permanente plebiscito favorece o obscurecimento das mortes, da tragedia sanitária e humanitária”, pontua a professora.