Já se sentiu deslocado e fora do eixo? Acho que é um sentimento meio sem nome, um não-pertencimento? Uma coisa esquisita que bate quando tem a sensação de que deveria estar em outro lugar, porque ali já não lhe cabe ou porque parece que não desejam sua presença.
Quando eu era uma criança, sentia isso. Em Mombaça, minha cidade natal, ainda bem pequeno, eu parecia não me encaixar, era como se lá não fosse o meu lugar. Isso me causava uma mistura de incômodo com inquietação, resultando nessa “coisa”, onde eu sempre me via fora do eixo. Melhor dizendo, sempre me vi artista. E lá, na minha terra, ser artista não era uma opção.
Mombaça nunca foi um local de efervescência artística. Nunca teve teatro, cinema, espaço cultural e nem mesmo escolas ou oficinas de formação na área. Na década de 80/90, tudo o que me chegava era pela televisão, rádio ou pelas músicas da vitrola de painho.
Foi daí que migrei. Eu queria ser artista, estudar, buscar informações, ser criativo mesmo sem ter nenhuma noção de como seria isso, mesmo deixando meu sertão com a promessa de virar “doutor” na capital. Mombaça não me cabia. Aos 13 anos, cheguei em Fortaleza: a cidade que teria o meu tamanho.
Quando entrei na antiga Escola Técnica (atual Instituto Federal de Educação), passei a entender, de fato, o que era ser artista e ter ainda mais certeza daquilo que eu queria. Então, me matriculei em cursos básicos de teatro, que logo me levaram a conhecer grupos de artes cênicas locais, que logo me levaram a trabalhar e iniciar minha carreira de ator.
Nesse meio tempo, vi grandes e experientes atores e atrizes abandonarem seus projetos aqui para tentar a vida artística no Sudeste. “Para ser um artista reconhecido e valorizado, é preciso fazer o nome no Rio de Janeiro ou em São Paulo”, ouvia dos mais velhos. E mais uma vez, passei a sentir que estava fora do eixo, fora do meu lugar. Mesmo realizando os meus sonhos, tudo indicava que eu precisava migrar mais uma vez. Em 2012, cheguei no Rio Grande do Sul: a cidade que teria o meu novo tamanho.
Em terras gaúchas, estudei, dei aula, escrevi e produzi um dos espetáculos que mudou a minha vida. A peça ganhou tanta força, que recebi propostas de temporada para apresentá-la no eixo Rio-São Paulo. Temporadas tão importantes para minha carreira que se tornaram trampolim para o cinema e para a televisão.
Maravilha! Eu cheguei lá! Olha que sensação gostosa essa de crescer, furar bolhas, ser reconhecido. Alcancei o status de “artista nacional”, uma chiqueza só. Todo mundo estava feliz, todas as expectativas foram realizadas, o Ceará está em festa, eu pensava. Com isso, posso voltar e ter mais espaço e oportunidades na minha terra… mas opa! - O que será que o sentimento de fora do eixo está fazendo aqui novamente? Terei que me mudar de novo?
Não dessa vez. O sentimento de não-pertencimento era mais complexo nesse momento, mais subjetivo, menos geográfico, diferente. Acreditei que retornar para o Ceará depois de ganhar notoriedade no país me garantiria oportunidades de trabalho por aqui. Puro engano! Me sinto cada vez mais invisível para o mercado teatral e audiovisual cearense - salvo por Halder Gomes, diretor que me abraçou em Bem-vinda a Quixeramobim. Fora isso, marasmo.
Nos últimos anos, fiz parte de produções culturais por diversos lugares do Brasil, especialmente no Nordeste - menos no Ceará. Ainda que eu opte por continuar morando na minha terra, existe um silêncio, um vazio. Se não fossem pelas minhas produções autorais ou em coletivo com As Travestidas, seria um grande marasmo. Não sei se é sobre o meu jeito, o valor do meu trabalho ou se pensam que eu me acho importante demais, esnobe, não sei, mas o sentimento de “fora do eixo” é latente.
Para se ter ideia, nem em Mombaça - que cresceu e ganhou visibilidade no sertão - eu desenvolvo trabalhos. Nunca houve qualquer interesse em levar qualquer espetáculo de teatro ou show meu, seja por meio da gestão pública ou por contratantes privados, ainda que esses produtos tenham orçamentos bem menores do que de grandes bandas de forró que se apresentam por lá, por exemplo.
E não se trata de querer concorrer com artistas de forró - mesmo porque acho super importante que a população também tenha acesso aos grandes shows do gênero - mas também me pergunto (de forma retórica, inclusive) se não é interessante que meus conterrâneos tenham acesso à arte produzida por alguém que saiu do mesmo lugar que eles.
Costumo dizer que, assim como na canção Princesa do meu lugar, do inesquecível Belchior, mesmo indo embora, eu sei que tenho pra onde voltar, eu sei que aqui é o meu lugar, ainda que esse lugar muitas vezes faça eu me sentir fora do eixo, não-pertencente, mas o que falta fazer? Qual estrelinha preciso ganhar? Qual fase do chefão preciso vencer?
O que deve um artista cearense fazer ou ser para que o Ceará o acolha?
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor