Moradores de um conjunto habitacional do Crato assistem ao sonho da casa própria virar um pesadelo real e sem data para terminar. São seres humanos que moram num condomínio construído ao lado do lixão do município. Eles têm tido as residências invadidas pela fumaça tóxica, problema piorado nesta época de escassez de chuva.
É tanta fumaça que, em alguns pontos, enxergam-se poucos palmos à frente. Lembra a névoa da Chapada do Araripe nos meses de junho e julho, mas sem o refrigério. É puro calor e dano à saúde em cada metro quadrado. Há relatos de crianças com mancha no pulmão e de idoso que teve que ser refugiado na casa de parente em bairro onde se possa respirar. Porém, a imensa maioria precisou ficar por falta de opção.
Permanecem, mas desesperados. Nesta semana, moradores se mobilizaram em protestos e em conversas com a imprensa, já que, segundo dizem, são moucos os ouvidos do poder público. Famílias interromperam a estrada que dá acesso aos caminhões onde é carregado o resíduo despejado no lixão. Era a única saída: obstruir a chegada de mais combustível ao incêndio incontrolado.
A prefeitura do Crato agiu. Ou afirma tê-lo. O secretário de Serviços Públicos, Tota Lobo, disse que, prontamente após verificado o incêndio, carro-pipa e outros equipamentos foram mandados ao lixão para que a fumaça fosse abafada. Mas, entre os moradores, há quem diga que alguma coisa só foi realmente feita depois que as chamas tóxicas ganharam as manchetes.
A montanha de resíduos que forma o lixão do Crato já era para ter parado de crescer há muito. Passou-se uma década e segue no papel e somente nele a ideia de instalar um aterro sanitário para os municípios da Região Metropolitana do Cariri.
Este colunista lembra bem: era repórter e entrevistou sobre o mesmo assunto o então secretário das Cidades do governo Cid Gomes, Camilo Santana, senador recentemente eleito após mais de 7 anos como governador. E o aterro consorciado segue sendo um plano engessado pela burocracia.
Assim como o Crato, municípios vizinhos têm a mesma sina. Em Barbalha, o lixão está localizado numa área de preservação permanente e reúne descontroladamente tantos resíduos que, faz semanas, invadiram o acostamento da rodovia CE-060.
Em Juazeiro do Norte, os incêndios, antes comuns, foram reduzidos, mas ainda se trata de lixão, com poluição irreversível do solo e do lençol freático. Inclusive é o maior dos lixões do Cariri. A conta por essa água contaminada está sendo debitada na saúde das próximas gerações.
Pesadelo parece ter prazo para acabar
Provocado, o Consórcio de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos do Cariri (CGIRS-Cariri) mandou nota informando que será realizada licitação para contratar empresa que vai assumir a gestão do aterro durante 30 anos. O secretário-executivo Brito Júnior disse que a previsão é que já no ano que vem seja utilizado aterro privado em Juazeiro do Norte, o que encerraria o depósito no lixão do Crato e em outros municípios. E mais: em até dois anos, haveria a execução plena do Plano Regional de Resíduos. "Temos esperança firme que esse seja o último ano dessas atrocidades nos lixões", disse.
Ministério Público Estadual pediu bloqueio de contas
Em nota, a 6ª Promotoria de Justiça do Crato informou que realizou contato com secretaria municipal de Meio Ambiente e que enviou ofício à secretaria de Serviços Públicos cobrando informações sobre a situação do lixão. O MPCE também garantiu que vai requisitar a instauração de investigação policial para apurar a poluição ambiental.
O MP informou que está intensificando os pedidos de andamento da execução de uma Ação Civil Pública em que se determinou a adoção de medidas mitigadoras dos problemas do lixão, com pedidos de bloqueios de contas municipais e pessoais do gestor.
Santos não fizeram milagre
As ações paliativas estão sendo intensificadas para que a fumaça dê trégua, mas os moradores sabem que esse pesadelo é daqueles recorrentes. O conjunto habitacional do Crato ganhou o nome de Madre Feitosa. A religiosa e educadora morreu quase centenária em 2019 como uma pessoa unanimamente admirada no Cariri. Quem conviveu com a Madre Maria Carmelita Feitosa afirma que foi santa. Os mais católicos do condomínio talvez tenham a quem pedir intercessão. Quem sabe a força divina faça romper as amarras da burocracia e da falta de vontade política de quem respira outros ares.
Cabe dizer, porém, que uma outra comunidade também violada pela fumaça do lixão leva nome de santo e dos canonizados. É a Vila São Francisco, de alcunha Sítio Quebra. Os moradores desse povoado da zona rural há mais tempo sofrem com a poluição que vem da montanha de lixo. É a comprovação de que ter um santo como padroeiro está longe de ser a garantia de respeito aos direitos humanos mais básicos, como o de respirar com dignidade.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.