Naturais das cidades cearenses de Assaré, Crato, Farias Brito, Parambu e Santana do Cariri estão entre as vítimas da enchente no Rio Grande do Sul. O bairro Sarandi, que fica na Zona Norte da capital gaúcha, era a morada de muitos conterrâneos que foram viver lá em busca de oportunidade de trabalho.
Foi o caso dos meus pais, que, chegados na década de 1980, moraram na Vila Elizabeth e depois na Vila São Borja. A primeira foi engolida pela água, cujo nível superou mais de metro. A segunda comunidade já estava sendo alagada quando falei com amigos nesta segunda-feira (6).
Assim como meus pais, que já estão de volta ao Cariri desde janeiro de 2001, a maioria dos cearenses que vivem no Sul trabalham como crediaristas. São ambulantes que vendem de porta em porta produtos como panelas, roupas de cama, mesa e banho.
Localizado na periferia de Porto Alegre, o bairro Sarandi era acessível nos preços dos seus aluguéis e estratégico, próximo de municípios da região metropolitana onde ficam os clientes preferenciais de crediaristas, como Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Gravataí e Viamão. Esses comerciantes, que enfrentam o sol e a chuva oferecendo os seus produtos, fazem vendas a crediário, por isso o nome.
Carreteiro e baião de dois
São famílias que vivem no Rio Grande do Sul há mais de uma década; algumas há 40 anos! Apesar de incorporadas à cultura gaúcha, inclusive por meio de casamentos, mantêm hábitos cearenses, formando uma espécie de mix do Sul com o Nordeste.
Nas ruas de paralelepípedo da Vila Elizabeth, com as suas casas de madeira e telhados vermelhos, cearenses foram acolhidos pelos gaúchos. Ali surgiram novas famílias brasileiras. Estes apresentavam os alimentos típicos, como o arroz carreteiro (cereal e carne cozidos juntos), a cuca (uma espécie de pão coberto por uma farofa doce) e o chimarrão. E aqueles mostravam o baião de dois, a rapadura e até a buchada.
Na casa dos meus pais, a segunda-feira era o dia do encontro de cearenses. Como os crediaristas cobram os clientes em casa, usam o fim de semana para fazer isso. Por isso, aquele era sempre o dia de descanso.
Além disso, minha mãe vendia comida aos cearenses que ainda não tinham constituído família, logo a casa era muito visitada. E também pelos gaúchos vizinhos, intrigados com aquele povo de riso fácil e sotaque às vezes difícil de ser entendido.
Um dia, numa conversa descontraída, presenciei a artesã gaúcha Elenaria Barude perguntar ao crediarista Robério Duarte (cearense do Assaré) se ele já tinha o CIC — a sigla do antigo Cartão de Identificação do Contribuinte, hoje substituído pelo CPF.
Berim, como era conhecido, disse:
“O 'siqui' que Corrinha mandou já comi todo”, confundindo o CIC com sequilho, o biscoito do Cariri que os cearenses também apresentaram aos gaúchos e que havia sido enviado pela irmã dele, professora na terra de Patativa.
No salão da Amvep (Associação dos Moradores da Vila Elizabeth e Parque), cearenses promoviam forró. Montavam as próprias bandas. Ou contratavam músicos que iam do Nordeste. Os gaúchos também adoravam!
Quando trabalhei na Zero Hora, jornal do RS, cheguei a escrever sobre o bairro. Acompanhei um forró. Deve estar nos arquivos do periódico.
Nesta semana, quando soube da tragédia no Sul, meu coração ficou cheio de tristeza e saudade. Entrei em contato com amigos. A maioria tinha saído de casa, abandonara tudo para salvar a própria vida. O Sarandi acabou, diziam! A água engoliu sonhos e realizações. Ficaram as memórias.
Esperança e reconstrução
Assim como outras partes deste país continental, o sul vem sofrendo com eventos climáticos extremos, uma consequência do aquecimento global, já estudado, anunciado, mas ainda desacreditado irresponsavelmente por parte da população.
O Sarandi é cercado por águas represadas em diques, que não suportaram a quantidade de chuva em tão pouco tempo.
Vejo muitos esforços que tentam levar esperança e reconstrução. Há pouco, li que uma prefeitura do Sertão dos Inhamuns vai oferecer oportunidade aos cearenses que quiserem voltar.
Ironicamente, os cearenses que saíram do sertão em parte pelas dificuldades econômicas causadas pelo clima semiárido tornaram-se agora refugiados climáticos por causa do excesso de água.