Há exatos 160 anos o presidente da Província do Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo, declarou ao governo imperial que a população indígena do estado estava extinta. Em 1863, o Ceará decretou o fim de seus povos originários: “já não existem aqui índios aldeados ou bravios. Das antigas tribus de tabajaras, cariris e potiguaris, que habitavam a província, uma parte foi destruída, outra emigrou [...] [o resto] dos descendentes das antigas raças andam-se hoje misturados na massa geral da população.”
Quase 150 anos depois, em 2012, a Assembleia Legislativa do Ceará fez uma audiência pública para discutir esse relatório provincial e essa “extinção indígena”. Diante de dezenas de lideranças e representantes indígenas, os deputados criaram uma comissão para provar a existência dos indígenas.
O Estado anunciava oficialmente para aqueles indígenas: Vocês existem! Parece piada o Estado precisar afirmar o óbvio, mas como o óbvio é cada vez mais essencial afirmamos aqui também, os povos originários EXISTEM, LUTAM E PERSISTEM. Apagados da História oficial, os muitos povos, mesmo invisibilizados, continuaram com personagens atuantes na dinâmica social de nosso país.
As populações indígenas e a formação do Ceará
As diversas populações indígenas do Nordeste se destacaram pela resistência à colonização, foi preciso uma ação agressiva de Portugal para garantir o controle de nossa região. A “Guerra dos Bárbaros” ou Confederação dos Cariris mostrou seu poder de reação ao expansionismo português.
Quando D. João IV deu as terras da região aos soldados da guerra contra os holandeses, os povos que ocupavam a região foram atacados. Em resposta Janduís, Paiacús, Kratiú, Icó, Sucuru, Corema entre outros incendiaram os sertões do Ceará à Bahia.
Os documentos deixam claro o pavor dos colonizadores ante as reações indígenas. Grupos de mercenários se organizaram para lutar contra os revoltosos. O rei europeu perdoou os crimes de qualquer um que fizesse guerra ao gentio. Acordos de qualquer natureza serviam na luta contra os indígenas.
A mais eficaz estratégia portuguesa de ocupação foi explorar as disputas internas entre os povos das áreas que queriam dominar, dividir para conquistar, nesse modelo a melhor forma de se proteger dos grupos mais agressivos era se aliar aos seus inimigos locais. Os jesuítas foram fundamentais à essa mobilização.
Os religiosos se uniram aos “povos amigos” fundando diversos aldeamentos que cercaram e protegeram a Fortaleza de Nª Sª d’Assunção associando a força militar daqui e d’além mar e atendendo à necessidade de abastecer e alimentar os colonizadores.
Os aldeamentos de Porangaba (parangaba), Caucaia, Mecejana (atual Messejana) e Paiacu (atual Pacajús) passaram a ser fundamentais à futura capital do Estado e hoje estão no cinturão principal de nossa região metropolitana.
Em 1759 o governo eleva as antigas aldeias às "vilas de índio" na Capitania do Ceará Grandes e as terras tomadas dos jesuítas foram dadas aos povos originários em troca de obediência e submissão.
Surgiam como “terras indígenas” as Vila de Soure (Caucaia), Vila Nova de Arronches (Parangaba), Vila de Mecejana, Vila de Montemor, o novo da América (Pacajús) e Vila Viçosa Real (Na Ibiapaba) seriam elevadas à vilas e suas terras, medidas e delimitadas, seria dada aos "índios".
Esse processo ampliou entre os interessados nas terras dos aldeamentos e a necessidade de deslegitimar as nações indígenas e suas demandas. O decreto de 1863 oficializou a expropriação das terras indígenas à custa de suas existências e a imposição de um silêncio sobre suas etnicidades virou. As “antigas raças” sumiriam para atender ao novo mercado.
Dos marcos temporais às marcas reais
Em todos esses eventos a relação entre o Estado e os povos indígenas se dá em torno da maior das riquezas: a terra. E isso nos leva ao motivador desse texto. Essa breve história dos indígenas e das terras do Ceará foi a recente aprovação do marco temporal.
O projeto muda as regras para demarcação de terras indígenas no país, ao estabelecer que só teriam direito à demarcação de terras os indígenas em territórios ocupados na data da promulgação da CF (5 de outubro de 1988).
Pensemos no Ceará, se o Estado não reconhece a existência destes povos como se fará justiça às ocupações destas terras. Sem direito de existir como seria possível o direito de possuir?
Para muitos brasileiros ser indígena é viver no passado, é somente usar cocar e andar nu, seja na deturpação da imagem do indígena colonial ou na visão romantista idealizado, ingênuo, incapaz e pueril sempre pensamos mais em Iracemas, Peris ou Ubirajaras do que
em nossos Tabepas, Tremembés e outros povos reais. Mais do que marcos do tempo passado podemos aprender com os povos do tempo presente.
Há 160 anos o Estado dizia que indígenas não existiam, há 10 anos aceitava que sim, os povos indígenas se negaram a sumir, há uma semana só são indígenas os que assim se definiam há 35 anos atrás.
São muitos marcos temporais de uma identidade nacional e regional que é fruto de lutas permanentes e sem tempo previsto para seu fim. Enquanto cearenses podemos ir além de José de Alencar e dos sensos comuns indianistas na hora de pensar sobre nossos povos originários, afinal o tempo mais importante da história é o agora.