Em março de 1889, meses após a abolição da escravidão e nos momentos finais da monarquia brasileira, as fiéis da Associação Apostolado do Sagrado Coração de Jesus da pequena comunidade caririense de Juazeiro do Norte se reuniram na Capela de Nossa Senhora das Dores para a novena e ladainha ao Bom Jesus.
A gente simples e pobre da região, com medo da fome e da seca, em meio à escassez das chuvas e às inseguranças políticas daquele contexto, buscava na fé a resposta para os seus sofrimentos. E foi na fé que a região encontrou caminho e desenvolvimento.
Na cerimônia de vigília da primeira sexta-feira da quaresma de 1889 aconteceu o famoso “Milagre de Juazeiro”, naquele ano a hóstia, dada em comunhão àquelas crentes mulheres pelo Padre Cícero Romão Batista, teria se transformado em sangue eucarístico pela primeira vez na boca de Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, mulher preta, pobre, analfabeta e sertaneja.
O milagre, o Padre-padim, as Romarias e a crescente cidade de Juazeiro do Norte são, hoje, nacionalmente conhecidas, mas, a beata onde o milagre se deu ainda está em profundo silenciamento e invisibilidade. Literal e simbolicamente desaparecida, a beata assume uma dimensão semiótica da história dos esquecidos na narrativa oficial do nosso passado.
Todo o movimento religioso, migratório, político, cultural e social que movimenta milhões de fiéis, valores, saberes e práticas de forma revolucionária na região sul do Ceará começou na fé simples de um povo em busca de salvação em meio às mazelas e vazios do sertão.
O silêncio da Beata em vida
Na noite do primeiro fenômeno, Maria de Araújo e as beatas do Apostolado da Oração passaram a madrugada em vigília. No relato do presentes a comunhão começou às cinco da manhã, o padre Cícero tinha acompanhado a penitência daquela noite e ministrava o sacramento ao final da cerimônia quando Maria foi acometida por um êxtase ao receber a partícula do sacramento.
Os presentes relataram como o sangue começou a verter de sua boca em grande quantidade se derramando no hábito de Maria. Era tal quantidade que escorria pelo chão, o primeiro acontecimento teria ficado em segredo, mas, o fenômeno passou a se repetir todas as quartas e sextas-feiras daquele mês de quaresma, inclusive na presença de outros padres, daí a notícia se espalhou e começou a ganhar popularidade.
O sangue que surgiria das hóstias na boca de Maria de Araújo era enxugado com panos que foram guardados pelo padre Cícero no sacrário da igrejinha. Aos poucos, os panos manchados de sangue tornaram-se objeto de culto, atraindo romeiros de todas as partes do Brasil. O fenômeno provoca até hoje um debate fervorosos sobre suas causas e origens.
Maria tinha 27 anos, quando começou a atrair atenção pelos fenômenos místicos atribuídos ao “Sangue de Cristo”. Desde os oito anos a beata estava sob orientação do Padre Cícero e dedicada à vida de leiga devocionada, comum entre a gente simples do sertão.
A notícia chamou atenção da Diocese cearense. O bispo, Dom Joaquim, escreveu indignado ao Padre Cícero em novembro de 1889 e surgiram conflitos entre a Diocese e os crentes do Cariri. O bispo estava revoltado por aquela agitação em momento tão inadequado. Não bastava ter que lidar com a república que separava a igreja do Estado brasileiro, agora tinha que conter o “boato que aqui corre com relação à beata Maria de Araújo.
A desaparição dos panos, do corpo e da memória
Os paninhos manchados do sangue que escorria da hóstia e da boca da beata, que a princípio chegaram a ser expostos à visitação pública mas por ordem de Dom Joaquim, que afirma que não era possível “depreender a veracidade do fato portentoso, isto é, de se ter convertido em sangue a sagrada partícula”.
O religioso determina então a reclusão da Beata na Casa de Caridade do Crato, o recolhimento e a proibição “expressa de qualquer culto aos panos ensanguentados”. Padre Cícero deveria então negar que o sangue das partículas era de Cristo e calar sobre o assunto até determinação em contrário vinda da Diocese.
Como a popularidade da Beata e do Padre de Juazeiro continuavam a crescer e Juazeiro do Norte virava um fenômeno demográfico com a afluência de peregrinos para a região. A reclusão forçada de Maria de Araújo virou uma forma de tentar conter os boatos de fenômenos místicos e histórias sobre ela que ganhavam o sertão. Assim a beata foi da reclusão ao esquecimento, sua figura diminuiu enquanto a persona pública e mítica do “Padim” cresciam e tomavam corpo.
O processo canônico e a politização posterior da região deram visibilidade cada vez maior ao Padre Cícero e lançaram Maria do Araújo ao anonimato histórico. A disputa entre o Padre e o Bispo levaram a suspensão de ordens Cícero e a clausura de Maria do Araújo.
A Igreja considera então os fenômenos como embustes, mas, o “Padim” se sobressai do processo como grande líder regional e o milagre, os panos ensanguentados e a própria Maria de Araújo caem em um vazio silencioso.
Maria de Araújo morreu há 110 anos, em 27 de janeiro de 1914, foi sepultada na Igreja que recebeu o corpo da mãe e das irmãs do Padre Cícero e que depois receberia os despojos do próprio religioso, mas, de todos os enterrados no templo, prática que já era proibida, o único corpo que foi retirado de seu descanso foi o da negra beata.
A máxima demonstração da necessidade de destruição total da memória de Maria e de sua exclusão daquele que se tornou o maior fenômeno social da região – criando uma dinâmica social própria ao Juazeiro com seus romeiros e penitentes – não foi sua reclusão ou mesmo sua morte no obsequioso anonimato, foi mais macabro e violento.
Demonstrando a necessidade de apagar os espaços de memória associados àquela mulher do milagre ocorre, 16 anos após seu sepultamento, a a violação do seu túmulo e o desaparecimento de seus restos mortais.
Em outubro de 1930, o monsenhor José Alves de Lima, vigário da cidade, teria ordenado a profanação do sepulcro e o sumiço do corpo, sobrando no lugar um pedaço de crânio com resquícios de cabelos, um cordão de São Francisco e um escapulário, guardados pelo padre Cícero em um pote de vidro que também desapareceu posteriormente.
Os panos, o túmulo, o corpo, os restos mortais, a memória e a história, enfim, tudo que se associa a Beata foi apagado. Não se trata mais de considerar o milagre real ou não. Juazeiro do Norte e o fenômeno social de sua fé o são, o Padre Cícero e seu papel político em toda a primeira república o são. A desaparição real e simbólica da Beata está além do seu caráter místico, são marcas do tipo de personagem que o Brasil aceita como seus representantes históricos legítimos e possíveis.
Atualmente vivemos o processo de reabilitação e os encaminhamentos da beatificação do Padre Cícero, mas, a Beata Maria do Araújo continua sumida e invisibilizada, submetida em vida, vilipendiada na morte, obscurecida na história.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.