Toda vida importa? Bilionários e imigrantes pobres em alto mar

O cenário é livresco: bilionários em uma viagem submersa em busca de destroços de uma tragédia cinematográfica - um naufrágio ocorrido há mais de 100 anos - sofrem um acidente fatal. É compreensível que, nos últimos dias, o mundo tenha direcionado sua atenção e páginas de jornais para esse acontecimento.

Um outro cenário também é livresco: mais de 700 pessoas deixam suas casas na esperança de recomeçarem suas vidas a partir do absoluto zero, fogem da miséria. O oceano também compõe o enredo desta trama, cujo desfecho também é trágico: mais de 300 cidadãos paquistaneses mortos em um naufrágio ocorrido na costa da Grécia.

Aqui, porém, é incompreensível que, nos últimos dias, o mundo – ou, pelo menos, boa parte dele - tenha fechado os olhos para tal fato.

Embora as situações não possuam correlação direta entre si, parecem estar irmanadas aos olhos do espectador, parecem duas faces da mesma moeda – assemelham-se a espelhos invertidos, uma reflete o extremo oposto da outra. No submersível, bilionários; na embarcação, a extrema pobreza.

De um lado, alguns buscavam uma aventura explorando os destroços de uma luxuosa embarcação naufragada há mais de um século; do outro, pessoas buscam a promessa de uma vida mais tranquila, mas naufragam em uma embarcação duvidosa. Ambos os grupos arriscam suas vidas, seja por aventura ou pela promessa de dignidade.

É possível se compadecer com ambas as situações e é preciso lembrar que uma tragédia não pode ser mensurada unicamente pelo número de mortos.

No entanto, não deixa de ser curioso notar como a tragédia com o submersível recebeu muito mais espaço na mídia e nos afetos da sociedade mundial do que o naufrágio de imigrantes. Alguns argumentam que essa diferença denuncia a desvalorização da vida dos pobres e a fetichização da vida dos mais ricos. Outros argumentam que situações envolvendo imigrantes podem evocar afetos controversos e tocar em questões políticas de difíceis resoluções, o que, consequentemente, poderia diminuir a atenção recebida.

De todo modo, também é chocante perceber que a própria tragédia do Titanic – um transatlântico que conduzia pessoas de classes sociais inteiramente diversas, de aristocratas a imigrantes – seja quase uma alegoria para essa discrepância social: a maioria dos mortos foi formada por pessoas pobres da terceira classe e tripulantes trabalhadores.

Por aqui o que desperta a atenção é, sobretudo, a banalização do mal. Centenas de pessoas morrem e se tornam somente estatística; bilionários morrem e se tornam alvos da curiosidade mórbida de alguns, para não falar do papel que assumiram de protagonistas em postagens irônicas e memes de redes sociais.

O mal se instala quando nossa capacidade imaginativa cessa. Ser empático com a dor do outro, seja pobre ou rico, exige imaginação para nos transpormos à experiência do sofrimento alheio. Os últimos dias demonstraram que nem todos estão aptos a imaginar como é estar em peles diferentes, como a de familiares enlutados, seja por bilionários ou imigrantes miseráveis. Toda vida importa? Parece que não.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora