Diferentes tipos de luto e a travessia da dor da perda

Há uma tradição que atravessou séculos e que ainda pode ser constatada em algumas cidades do interior: os sinos da Igreja dobram, ou seja, tocam, para anunciar a morte de alguém. Sobre isto, o poeta John Donne (1572-1631), escreveu:

“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo. (...) A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Em outras palavras, quando alguém morre, uma parte de toda a humanidade morre um pouco com essa vida que partiu. E nos últimos dias tenho lembrado dos sinos que dobram: Sophia, de dois anos; Super Chico; Janaina Bezerra; Glória Maria; Burt Bacharach; mais de 16 mil anônimos, por ora.

Seus óbitos vieram à tona nos noticiários nos últimos dias, seus familiares e amigos sofrem uma das dores mais dilacerantes que um ser humano pode experimentar: a dor do luto.

O luto não é uma temática estranha ao ser-humano, o partir é inerente ao nosso ciclo da vida. Desde tempos imemoriais, quando ainda vivíamos caçando e coletando frutos na natureza, nós tentávamos atribuir algum sentido à morte (e, consequentemente, também à vida). Contudo, ainda que seja uma realidade inexorável, o “único mal irremediável”, como diria Ariano Suassuna, vivemos como se nunca fôssemos morrer.

Na famosa novela de Tolstói, “A Morte de Ivan Ilitch”, vemos que Piotr Ivânovitch, durante o velório do seu amigo Ivan Ilitch, traz um retrato desse distanciamento: “Piotr Ivânovitch acalmou-se e pôs-se a interrogar com interesse a viúva sobre pormenores do passamento de Ivan Ilitch, como se a morte fosse uma aventura inerente a Ivan Ilitch apenas, e de modo nenhum a ele também”.

Me questiono se não somos todos, em nosso íntimo, um pouco como Piotr, apesar de acompanharmos diariamente as notícias sobre os mais diversos tipos de morte. Afugentar o tema da morte, para além do choque da manchete, impede que alguns conhecimentos nos cheguem e fazem com que muitos lutos sejam agravados.

Compreender sobre o luto é uma possibilidade de ter maiores recursos para o enfrentamento diante do inevitável partir. O luto se refere às nossas reações diante de uma perda significativa, habitualmente pela morte de alguém, mas também utilizamos o mesmo termo ao falarmos de perdas simbólicas, por exemplo, quando um casamento se desfaz, quando há uma demissão de um emprego querido.

A maneira que lidamos com nossas perdas significativas está diretamente vinculada ao tempo histórico e cultura na qual estamos inseridos - na sociedade atual, por exemplo, na qual o imperativo da felicidade predomina, temos dificuldade em aceitar nossas dores, até a dor dilacerante de uma perda significativa. Perdoem a expressão clichê, mas “precisamos falar sobre luto”.

As dores envolvidas em perdas significativas são imensuráveis, mas a travessia pelo processo de luto dependerá de muitos fatores que vão para além de nossos afetos pessoais pelas pessoas que partem. Por exemplo, a idade da pessoa que morre, se essa morte seria evitável, se foi uma morte considerada injusta, a natureza dessa morte, a causa, tudo isso tende a nos impactar.

Por isso que a notícia da morte de Burt Bacharach, o compositor de 94 anos, que colecionou 3 Oscar em sua carreira e sucessos imortais, como "I say a little prayer" e morreu ontem de causas naturais, nos impacta de modo bastante diverso que a morte de Sophia, uma criança de dois anos, espancada e estuprada, morta devido aos maus tratos da mãe e do padrasto, ainda que tenha sido atendida 30 vezes por causa das agressões.

Cada dor é singular, cada luto é vivenciado de modo único, mas há tipos de lutos e entender isso pode facilitar a aceitação dessa travessia. Há lutos traumáticos, que nos trazem mortes inesperadas, muitas vezes associadas a acidentes, homicídios.

Há lutos que tendem a se complicar mais, como quando a morte é causada por suicídio - o sentimento de culpa, costumeiramente, visita aqueles que ficam – e é preciso lembrar: não, você sozinho não poderia ter evitado.

Há o chamado luto antecipatório, aquele que passamos quando recebemos um diagnóstico de adoecimentos que provocam uma ruptura com a nossa vida anterior – é preciso aprender a viver sob novas condições, em um tempo incerto.

Há lutos coletivos: normalmente, decorrentes de tragédias e catástrofes naturais, como o que o Brasil viveu 10 anos atrás com a tragédia na Boate Kiss, como o mundo vive agora pelos mais de 16 mil mortos em decorrência do terremoto na Turquia e Siria – sequer conhecemos as pessoas que ali estão, mas ainda nos resta humanidade para sentir com eles, sentir por eles.

Há lutos ausentes, como quando temos a impressão que alguém se mostra indiferente à morte da pessoa querida. Mas, na maioria dos casos, são seus sentimentos que estão bloqueados. Às vezes, ao estar despreparada para enfrentar a realidade, seu corpo se nega a sentir essa dor.

Outros lutos são considerados “não reconhecidos” ou “desprivilegiados”, ou seja, não são expressos e vivenciados abertamente sob a pena de sofrermos algum tipo de censura social, como, por exemplo, quando alguém tem vergonha de dizer que não irá voltar ao trabalho porque seu gatinho de estimação morreu. Por vezes, esse tipo de dor é subestimado e o enlutado se sente desamparado, o que aumenta sua dor em um momento tão delicado.

O luto não reconhecido, costumeiramente, também ocorre em casos de lutos gestacionais: a solidão e a falta de acolhimento provocam dores que rasgam – e frases como “não se preocupe, você engravida de novo” ou “pelo menos você tem outro filho”, como se aquela vida perdida fosse substituível, merecem ser tiradas com urgência de nosso repertório social.

Os inconvenientes sociais também atrapalham a travessia de alguns lutos, a curiosidade mórbida de alguns impede o exercício da empatia. Na sanha de sanar a própria curiosidade sobre a causa mortis, se esquece que há alguém ali a rememorar detalhes de uma perda significativa a cada vez que responde como tudo aconteceu. Se você lembrasse que os sinos dobram por ti, talvez, muitos inconvenientes pudessem ser evitados.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora