Quando eu era criança, meu desejo secreto era ser artista. No pequeno apartamento da Av. Visconde do Rio Branco tinha uma lousa onde eu desenhava e interpretava os personagens das minhas histórias. Um ato onde eu podia ser o “Rei, o bedel e o juiz”. Com a descoberta da música, queria saber cantar, mas desafinava até no “Parabéns para você”, ainda assim não deixei de, em casa, gritar da janela minhas canções feito catarses.
Depois de adulto, após sobreviver às pestes, física e mental, a convite da minha querida Aparecida Silvino, resolvi soltar a voz e aprender a arte do canto. No início, me colocar na frente do microfone, não sendo para discursar ou recitar algo, que já tenho costume, foi difícil. Os trabalhos de relaxamento dos ombros e outras musculaturas, acertar o tom e entender as letras, não mais como pesquisador, mas feito “intérprete” foi um grande reencontro com a criança que tanto vou me despedindo.
Quando solto agora a voz, entendo mais meu corpo, minha cabeça e minha alma, o instinto é de libertação e minha professora “Apá”, como é conhecida, tem me ensinado muito isso. Outro lado da música que eu não conhecia mesmo sendo um árduo amante e investigador das canções.
Neste meio termo, me descubro artista, não do canto ou das artes cênicas, mas sinto que estas linhas em comunhão neste texto também são arte: Sou escritor! Mais um encontro, só que eu não sabia que nessa ferrovia da vida, temos de nos deparar com as despedidas e estas têm sido tantas nos últimos meses seja de pessoas, locais, sonhos e até ídolos.
As cinco pontas de uma estrela
No dia da minha segunda aula de canto, acordo (tarde como todos os notívagos) e me deparo com a saída de cena de Gal Costa. Que dor tamanha, tanta que é até difícil de superar. Confesso que uma das minhas características é a parcialidade, tenho minhas preferências e não as escondo.
Digo isso, pois por muito tempo quando me faziam a pergunta: “Gal ou Bethânia?", eu sempre preferi a segunda, deixando a outra baiana em outro plano, apesar de reconhecer todos os louros de sua força para a nossa cultura nacional. Que seu simbolismo, vindo desde o tropicalismo, ultrapassou fronteiras e segue por um Brasil ainda não descoberto, porém em Dezembro de 2021 tudo mudou!
A convite de uma amiga, fui assistir meu primeiro show da Gal Costa, foi também o primeiro evento que iria desde o início da pandemia. O espetáculo de proposta de unir as cinco pontas de uma estrela me fascinou! A plateia estava repleta de pessoas queridas para aplaudir aquela que sempre será uma das maiores. Meu olhar diante da artista mudou, principalmente no bis, quando em um grande encontro de abraços pedimos juntos para o “país mostrar sua cara”.
A êxtase do espetáculo foi tanta que terminou quase no raiar de um outro dia celebrando a vida da veterana e eu em pensamento repetia, no “próximo show de Gal, aqui estarei novamente na primeira fila”. Infelizmente não deu tempo, e a hora do encontro foi também a despedida.
Na mesma quarta-feira que perdemos Gal Costa, também assistimos ao voar Rolando Boldrin, nosso Sr. Brasil que, na televisão e na música, foi um dos grandes defensores do cancioneiro caipira de raiz. Aliás, dos sons de uma nação diversa e plural, sempre fazendo questão de reavivar nos palcos da vida.
A Última Sessão de Música
Buscando um alento para aquela semana tão difícil, mesmo pela televisão, acompanho o último show do nosso gênio Milton Nascimento, um criador em sua essência. Segundo o artista, a aposentadoria só será dos palcos, pois continuará compondo, mas assistir “A Última Sessão de Música” provocou um misto de sentimentos.
Mesmo de longe, senti a energia do Mineirão lotado gritando “Bituca, eu te amo” e as lágrimas do nosso agora octogenário compartilharam das minhas quando ele falou “este show é a prova que meus sonhos não envelheceram”. O trem fumaçante de Minas Gerais volta a chegar na estação com a participação do “Clube da Esquina” juntos novamente em um palco 60 anos depois.
Aplaudi de pé em casa aquele coração de estudante que vibrou a democracia em suas palavras e me fez lembrar mais uma vez do menino que existe dentro do meu coração e que sempre me dá a mão. Não posso negar a minha dor de assistir a debilidade de saúde de Bituca, e que aposentadoria de um artista é em outras formas um adeus precoce. Isso me machucou, aliás, segue como ferida viva. Independente disso, foi lindo, merecido e digno de quem MIlton é e sempre será.
…E assim chegar e partir
As tristes surpresas não acabaram e assisti mais um ícone sair de cena e partir para a eternidade. Ninguém menos que o “Tremendão”, Erasmos Carlos, o eterno galã da Jovem Guarda e um dos grandes símbolos do Rock Romântico na música brasileira deixando uma legião de fãs atônitos com tal notícia.
O entender que nossos ídolos também se vão, mesmo Erasmo que esbanjava jovialidade dói bastante e inúmeras questões, principalmente de futuro. Não poderia deixar de mencionar Belchior para dizer que os “nossos ídolos ainda são os mesmos” e faltam novos nomes, sons e gritos que nos empolgue.
Entender a finitude da vida é cruel, me lembra Charles Bukowski afirmando os desastres ébrios desse mundo, porém eles fazem parte da nossa história e como já diz outro autor “um dia seremos apenas um retrato na estante de alguém, depois nem isso ".
Faz parte do show, são só dois lados de uma mesma viagem.
De Gal, Erasmo e Milton, sempre ficarão sua relevância histórica na música brasileira, seu legado de amor à arte, suas revoluções criativas particulares e plurais e, claro, as vozes que encantaram e seguirão emocionando gerações. De mim, bem menor que eles, sobreviverão estas linhas que reafirmam que a hora do “encontro também é de despedida”. Ainda assim, sigo o que estou aprendendo e vou soltando “a voz nas estradas da vida” para dizer “qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar”.