Difícil acompanhar a transmissão das Olimpíadas de Tóquio 2021 e não ficar com a batida do funk “Baile de Favela” na cabeça. O som foi trilha sonora para a ginasta Rebeca Andrade conquistar importantes medalhas e também o coração de inúmeros brasileiros.
Mesmo apresentando só a melodia, é impossível não trazer para a discussão também a letra desse “hit” que está nos representando em um dos maiores eventos esportivos mundiais. A música de 2015, mesmo que feita com outra finalidade na cabeça do autor, merece sim ser questionada em vários aspectos.
Compreendo a situação no qual surgiu. O MC João, compositor de “Baile de Favela”, musicalizou elementos do seu contexto social, o artista cresceu na periferia de São Paulo, inclusive, em uma comunidade próxima à que a ginasta Rebeca nasceu. Além das condições pobres, quando tinha 17 anos perdeu o pai, o mantenedor de toda a família.
Desafiando toda uma sociedade desigual e segregadora, João virou MC. Hoje tem seu próprio escritório de funk, o clipe de seu sucesso tem mais 230 milhões de visualizações e, além de tudo, conseguiu representar sua realidade em seu som.
Agora, diante tantas vitórias de alguém que veio de um Brasil desconhecido das elites, não podemos fechar os olhos para certos aspectos da letra que não rimam com o ideal de igualdade no qual ela deseja alcançar. Desculpem os descordantes, mas precisamos ter coerência.
O Machismo ainda impera
O Brasil ainda é um país dominado pelo patriarcalismo e as leis machistas ainda calam essa sociedade tão hipócrita, com sofrível liberdade e pouco progresso. A voz do homem ainda grita, impera, machuca, agride, abusa e mata. Há sempre algum caso de violência doméstica próximo de nós, isso quando ele não acontece dentro da nossa própria casa.
São tantos tipos de agressões e torturas que a mulher sofre que dói até de escrever. Para termos uma noção, quando falamos de um único dos muito tipos de abuso, segundo dados da Pesquisa Nacional da Saúde (PNS), divulgada em maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, quase 9% das mulheres do país sofreram violência sexual alguma vez na vida.
Dentro desse contexto, fechar os olhos para os versos de “Baile de Favela” é tão incoerente quanto a escolha do tema para nos representar em um momento tão importante como o das Olimpíadas. Reforço, até desacredito que tenha sido intenção do autor, mas em vários de seus versos a “cultura do estupro” pode ser interpretada.
Em certo momento da letra, o eu lírico do funk afirma que vai ter relação sexual com uma moça da comunidade junto com vários amigos. Você, leitor, pode até me questionar, falar que as expressões utilizadas dentro dos bailes das favelas tem outro contexto, mas em um país onde o machismo segregador e violento impera, todo o cuidado dentro de uma produção cultural é importante.
Há quem diga, inclusive inúmeros defensores da composição, que a relação sexual foi consentida já que é afirmado desde as primeiras palavras da composição “que ela veio quente e hoje eu tô fervendo”. Porém em versos conseguintes, quando se sente desafiado o “macho alfa” da composição quer se mostrar superior e chama os amigos e faz sexo coletivo com a moça. E o consentimento dela? Aconteceu?
O Funk é a voz do Morro
Inúmeras vezes já escrevi neste espaço afirmando que qualquer manifestação artística não pode ser vista somente como entretenimento, mas sempre analisada em um contexto social e sua ideologia. Aliás, foi nesse sentido que o Funk surgiu, um dos mais representativos e importantes, socialmente falando.
Para explicar melhor, o estilo surgiu como uma fusão do Soul e Hip-hop tocados nas periferias cariocas. Vale lembrar que esses dois gêneros já carregavam em sua essência um teor de causa social em seu país de origem, Estados Unidos, e hasteando a bandeira de luta pela igualdade racial, por exemplo.
Nesse movimento, os DJs nossos, ainda na década de 1980, começaram a desenvolver novas técnicas de mixagem para tornar aquele som mais dançante e brasileiro. Foi assim que surgiu o Funk, tendo um de seus inauguradores o DJ Marlboro, e logo aquele som iria se popularizar no Rio de Janeiro.
Segundo o pesquisador musical Hermano Viano, no período se realizavam cerca de 700 bailes funks por fim de semana na capital carioca, sendo que cada um deles teria um público de quase 2 mil pessoas.
Apesar de algumas versões de gosto duvidoso, como a Melô da Funabem, o Funk na década de 1990 se tornou brasileiríssimo e virou a “Voz do Morro”. Nesses anos surgiram sons maravilhosos e letras altamente contestadoras, é o exemplo do “Rap da Daniela”, do MC Mascote, que falava sobre a bárbara morte da atriz Daniela Perez.
Outros funks que merecem ser mencionados são o Rap do Pirão (falando que o respeito que constrói o baile nas favelas), Rap do Borel (letra que pede a paz nos morros, comovente) e Rap das Armas (que narra a violência nas comunidades). Em 1995 surge o mais importante de todos, “Rap da Felicidade” (de Cidinho e Doca) onde o eu lírico da música só quer se orgulhar em ter a consciência que pobre tem seu lugar.
A partir de então, mesmo assumindo por vezes caminhos mercadológicos superficiais e apelativos (é o caso de “Eguinha Pocotó”, “Cerol na Mão” e “Vai Serginho”), mas o funk ainda continuou produzindo sons envolventes como a “Só pensa em Beijar”, sucesso do MC Leozinho no ano de 2006.
O gênero segue brilhando e levando um Brasil que precisa ser mostrado, sufocado pelo próprio poder, assinando os próprios filhos e vestindo sua camisa repleta de contrastes e injustiças. Porém, assim como em toda expressão artística, precisa ser analisado com sensibilidade e atenção.
O ano de 2015 e suas marcas
2015 foi o ano em que o Baile de Favela bombou, principalmente na virada para o ano de 2016, o hit estourou nas paradas de sucesso chegando aos 100 milhões de views na internet. Foi o ano de auge no “MC João” e seu som que colocou o Brasil para dançar.
Foi nesse mesmo 2015, para ser mais específico no dia 27 de maio daquele ano, quatro adolescentes, duas de 17 anos, uma de 16 e a mais nova de 15, enquanto iam fazer um trabalho fotográfico da escola em um ponto turístico do Piauí, onde moravam, foram rendidas por cinco homens, amarradas, espancadas e estupradas durante duas horas.
Depois do abuso, os criminosos jogaram as mulheres do alto de um morro de dez metros de altura. Devido às lesões de todas violências possíveis, a mais velha veio a óbito depois de dez dias de internação. As demais sobreviveram mas com traumas para o resto da vida.
Em nenhum momento quero dizer que a música fez a apologia da situação, jamais, apenas quero reforçar que a violência contra a mulher é mais frequente do que imaginamos. Na hora que um compositor estiver pensando em escrever uma nova música um ato de violência, preconceito e descriminação pode está acontecendo do outro lado do mundo e a arte deve ser vista como manifestação de revolta diante tudo isso.
Repito, tenho a convicção que a intenção do MC João foi falar sobre suas origens e os seus, mas como compositor, deixar aberturas para interpretações distorcidas é também sua responsabilidade, e tão grave quanto as brechas nas leis da nossa constituição.
Talvez, minhas palavras possam ser taxadas de muitas formas. A devoção leva muitos a cegueira e em terra onde as redes sociais imperam, os haters são inevitáveis, o incômodo natural. Apesar de tudo, é necessário trazer uma realidade dura e necessária. Não há o que temer o “cancelamento” e sim “incoerência”.
“Baile de Favela” ganhou uma nova versão do artista homenageando a ginasta Rebeca e é com nova letra que quero perpetuar a música em minha memória. Homenageando uma atleta brasileiríssima, cheia de garra e sonhos que representa tão bem a grande parte da população tão sofrida deste país.