O tempo, mesmo sendo louvado em muitas letras de canções, é feroz e democrático, deixa marcas em todos. Com a idade, o corpo vai se enfraquecendo, se tornando mais frágil e é preciso compreender esse processo, por mais que ele seja doloroso.
“Ser inteligente é saber a hora de parar”, afirmou a eterna Bibi Ferreira, nosso Chaplin brasileiro, ao anunciar aposentadoria devido o peso dos 96 bem cumpridos anos de vida, em 2018. Dentro desse pensamento, a dupla “As Galvão” encerra uma trajetória de 74 anos de trabalho e dedicação à música sertaneja.
As irmãs paulistas, Mary e Marilene, foram pioneiras dentro do gênero musical no país. Fizeram sucesso, são referência dentro do mercado musical caipira do país, mas agora, devido ao avanço no Alzheimer da caçula, a dupla chega ao fim deixando um público emocionado e repleto de saudade.
Talvez você, amigo leitor, possa não lembrar das cantoras, mas com certeza já ouviu os versos “Que beijinho doce, que ele tem” ou “Vivo do calor dos seus braços de seus abraços”, foram sucessos dessas estrelas que agora se recolhem, mas jamais deixaram de brilhar.
O beijo mais famoso do Brasil
Há dez anos Marilene Galvão, vem sofrendo com o Alzheimer. Com tratamentos, dentre eles a música, que foi grande terapia para conter o avanço da doença, a artista seguiu a dupla com a irmã e fazendo série de shows, participações em programas de rádio e televisão e lançando até em 2017 o primeiro DVD da dupla.
Mesmo na pandemia, as duas ainda fizeram uma live, participaram do “Projeto Vozes da Melhor Idade”, produzido pelo Thiago Marques Luiz. Ainda com tanta atividade e amor pelo ofício, no final do último junho, Mary anunciou que a irmã não conseguia mais lembrar as letras das canções e que não tinha condições de continuar.
Esse anúncio não encerra somente a trajetória de uma das referências musicais sertanejas, mas revela também o quão somos vulneráveis diante o tempo e todos estamos expostos a esse mal.
As duas iniciaram a carreira no ano de 1947 em uma rádio no interior de São Paulo, ainda crianças Mary tinha sete anos enquanto a irmã acabava de completar cinco anos. O que não sabiam aquelas pequenas que a música meiga que cantavam seria seu maior sucesso por mais de setenta anos, a imortal “Beijinho Doce”.
Desde então passou a gravar outras músicas conhecidíssimas no cancioneiro popular Caipira como a “Tristeza do Jeca”, “Colcha de Retalhos”, “No calor dos teus braços” e “Triste Berrante”, mas foi aquele beijo tão simples e sincero que as fizeram vencer nessa estrada tão bonito.
A música foi até inspiração para a telenovela “A Favorita”, da Rede Globo, onde as atrizes Patrícia Pillar e Claudia Raia, interpretavam personagens que tinham sido uma dupla na infância, “Faísca e Espoleta, e Beijinho Doce havia sido o cargo chefe delas.
A memória jamais apagará
Cantores de todas as gerações da música sertaneja louvam as Irmãs Galvão. A lista é grande, dentre os nomes estão Chitãozinho e Xororó, Daniel, Milionário e José Rico, João Mineiro e Marciano, Inezita Barroso, Michel Teló e tantos outros.
As duas amam tanto o ofício de cantar que ainda diante a dificuldade lançaram a belíssima “Eu não tenho Culpa”, de Mauro Campanha e Fátima Leão, e que narra a dor da família que sofre com o Alzheimer. A letra é comovente e a interpretação das irmãs mistura as rimas amor e dor.
Pensando na caçula tão amada, Mary Galvão decidiu continuar com a carreira solo, mas com uma condição: nos ensaios ensaiar com a presença de Marilene. Essa é uma forma de manter a cantora feliz, já que esta não sabe que a dupla chegou ao fim. Além disso, a Galvão deseja fazer palestras também sobre o cuidado de idosos que sofrem com esse mal.
Quando a história perpetua a eternidade de alguém, é a prova que aquela vida foi bem cumprida e nem doença ou tempo irá apagar. Esse é o caso de Mary e Marilene, que serão sempre lembradas por sua contribuição na música brasileira e na vida de tantas pessoas, anônimos, fãs e até ídolos.