O dia em que eu perdi o direito de engordar

Não importa o quão longe você chegue, que seja você Marília Mendonça, o seu corpo, ainda assim, será assunto um dia depois da sua morte

Na verdade, devo começar dizendo que, como qualquer mulher, nunca nem tive o direito de engordar, ainda que não soubesse disso. Mas o que conto aqui é sobre o dia em que eu descobri que não tinha esse direito. Devo salientar, também, já neste início, que sei que não me enquadro na categoria “mulher gorda” e que isso me protege e sempre me protegeu de certas violências. Como não ser uma mulher negra me protege. Como não ser uma mulher trans, idem. Mas meu corpo de mulher no mundo é um alvo por si só. Sempre foi.

Fui uma criança magra do tipo de ter que tomar Biotônico Fontoura para ajudar a colocar uns quilos no corpo. Uma adolescente que usava 34 e que, de vez em quando, sonhava com umas curvinhas para ser mais desejada - pelos rapazes. Já na faculdade, o novo estilo de vida e mudanças naturais de ir me tornando uma mulher adulta adicionaram uma camada extra de gordura na minha barriga, quadris, seios, pernas, braços, trazendo, enfim, as curvas que eu queria. Mas descobri que a equação não era assim tão simples. E que no jogo do tira-e-bota eu não ia ganhar nunca.

Certo dia, sentada no sofá da minha casa com uma amiga, uma dobra de gordura deve ter saltado por cima do cós da minha saia, e ouvi: “amiga, preciso te falar uma coisa, só vou falar porque às vezes a gente não percebe, e ouvir alguém de fora ajuda: você engordou”.

Não era uma ajuda, era uma sentença, percebi a diferença. Repare: eu era uma jovem magra, que ainda usava jeans de número pequeno, e que, no instante em que passei a comprar um tamanho levemente maior, recebi um alerta. Calculei: se minha amiga disse “é para te ajudar”, então era grave.

Iniciei, ali, meu estado de vigia a qualquer alteração. Coincidentemente, notei que abriu-se uma porteira por onde entrou muita gente cheia de opinião - nenhuma solicitada - sobre as minhas formas. Eu, nova, no auge dos meus ainda poucos quilos, ouvindo: suas pernas estão mais grossas, essa barriguinha apareceu de onde, você está grávida? (pasmem), e, até a costureira onde eu fazia pequenos arranjos nas roupas, soltou: quem mandou engordar?. Preciso salientar que parte das “observações” eram feitas por homens gordos.

Um pouco mais adulta, aos 25 anos, o jogo inverteu - e eu continuei perdendo: o excesso de trabalho, a pouca alimentação e uma fase emocional difícil me jogaram de volta ao campo dos corpos elogiáveis. Magra e doente, os comentários passaram a ser: qual dieta você fez?, tá linda, parecendo uma modelo, que genética abençoada. Seguidos por um ou outro: exagerou na magreza, a bunda sumiu. É confuso.

Por fim, nos últimos 10 anos, o corpo que tenho hoje - uns bons quilos acima do considerado ideal por muitos - passou a ser construído. Essa construção nasce de uma série de alegrias: a liberdade, a semi-confiança, as muitas saídas com amigos, os romances que vivi e que envolveram viagens e gastronomia, as poucas privações, a ausência total de dieta, as infinitas garrafas de vinho, e, sobretudo, a minha voz me dizendo que meu corpo é meu e de mais ninguém.

Minha voz, contudo, sabe que não pode descansar. Porque briga com outra, externa e barulhenta, me trazendo de volta a certeza de que meu corpo é da conta de todo mundo. E além: a voz coloca em perspectiva o que mulheres gordas - de fato - estão sofrendo o tempo inteiro: violências, humilhações, rejeições, perda de dinheiro, de trabalho, de amores.

A atenção constante vem da tristeza de saber que estamos todas numa arena de julgamento ininterrupto. Que nas redes sociais, corpos femininos são atacados dia após dia, em maior ou menor intensidade. Que não importa o quão longe você chegue, que seja você Marília Mendonça ou Adele, que você revolucione o seu mercado com o seu talento retumbante, o seu corpo, ainda assim, será assunto um dia depois da sua morte, num artigo público de um jornal dito respeitado.

Uma voz que me lembra que, por mais que a pauta evolua, que estejamos abrindo espaços para nossas diferenças no Instagram, a geração TikTok chegou com os mesmos velhos vícios: as distorções de imagem, obsessão pela magreza (que também não é completamente aceita, mas ameniza alguma coisa), o perverso bullying. Uma voz que, por fim, me lembra que seguimos tentando, e seguiremos, que o poder sobre o corpo é coisa nossa, mas que livres, livres mesmo, nós não somos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.