Cineasta Déo Cardoso avalia trajetória do premiado 'Cabeça de Nêgo' e adianta novos projetos

Estreia do diretor em longa-metragem, “Cabeça de Nêgo” foi lançado há mais de quatro anos e construiu circulação comercial e independente

Já faz mais de quatro anos desde que “Cabeça de Nêgo”, primeiro longa do cineasta "estadunidense-cearense" Déo Cardoso — nascido nos EUA, mas radicado no Ceará —, estreou na 23º Mostra de Cinema de Tiradentes. O caminho de circulação do filme — que incluiu os circuitos comercial, de festivais e também alternativo — se encerrou no final de março deste ano, com a premiada passagem da produção pelo 41º Festival de Cinema Latino-americano de Bordeaux, na França. 

Em entrevista por telefone ao Verso, Déo traça um olhar de avaliação à trajetória de permanência e repercussão de “Cabeça do Nêgo”, rememora contextos de produção e lançamento do longa, lembra os 15 anos do curta “Pode Me Chamar de Nadí” e adianta os estados — e desafios — dos próximos projetos.

Grito "entalado na garganta"

Na trama de “Cabeça de Nêgo”, Saulo Chuvisco (Lucas Limeira), um aluno de uma escola pública de Fortaleza, reage a um insulto em sala de aula e acaba expulso. Em resposta, ele se recusa a deixar a instituição e passa a ocupá-la, expondo nas redes sociais o caso e a situação do colégio. É o estopim de um movimento estudantil que se alarga de forma surpreendente.

A primeira exibição pública do longa foi na Mostra de Tiradentes de 2020, de onde saiu sem o prêmio oficial, mas angariando repercussão positiva. Com impactos da pandemia, a estreia comercial se deu somente em outubro de 2021.

“A carreira do "Cabeça de Nêgo" foi muito única, me surpreendeu, e posso creditar essa boa surpresa ao povo preto e periférico, no geral, que deu essa força para o filme. Ele veio em um momento em que se tinha muita coisa entalada na garganta”, define Déo.

O filme foi concretizado a partir do Edital Longa BO Afirmativo 2016, voltado para cineastas negros e negras, que também deu recursos para “Um dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira, e “Marte Um”, de Gabriel Martins, outros dois longas centrais da produção contemporânea brasileira.

“São filmes que chegam nesse momento de debate acalorado, então credito muito a carreira dele às pessoas que assistiram com sede de saber mais, de dar uma força para os e as cineastas pretas chegando. Começou o burburinho, o bafafá: ‘olha, tem um filme preto em Tiradentes, foi bem recebido’”, lembra. 

“Burburinho e bafafá — para quem não tem dinheiro para investir na comunicação, como a gente — foram fundamentais”, atesta. Apesar de ter sido negado em “muitos festivais”, o longa conseguiu começar a circular e o movimento foi se ampliando. Com isso, ele foi também acumulando premiações.

Rede Chuvisco pelo Brasil

Segundo Déo, a estreia no circuito comercial, em 2021, foi possível graças ao dinheiro do licenciamento da Globoplay, que passou a disponibilizar o longa em novembro do mesmo ano.

O destaque para o diretor, porém, foi a circulação “para além do circuito tradicional”. “Eu tinha em mente que esse filme tinha que ir para sala de aula, assentamento, quilombos, periferias”, explica. A aprovação em um edital da Suécia possibilitou a concretização do projeto Rede Chuvisco, de distribuição alternativa por comunidades de todo o País.

“A boa recepção em públicos tão distintos se deve à honestidade do filme, dos personagens. Ele não chegaria a lugar nenhum se não fosse a sinceridade do elenco, 98% cearense, jovem, das periferias, com muita coisa entalada na garganta e que deixou essa energia transbordar no filme”, reforça.

De espírito “enérgico e de impacto”, como descreve Déo, o longa conseguiu estabelecer diálogos múltiplos e ricos por essa “sinceridade”. “Por mais que possa ter falha aqui e ali, isso é superado pelo espírito do filme, que é o de uma galera que fez com sangue no olho. Não tem como não sentir. Isso é muito verdadeiro e quero muito preservar isso para os próximos projetos que eu vou fazer”, afirma.

De “Nadí” a “Os olhos do Mar”

Apesar de “Cabeça de Nêgo” ter sido o longa de estreia de Déo, a carreira do cineasta já somava mais de uma década na época do lançamento. O primeiro curta de destaque do diretor é “Pode Me Chamar de Nadí”, de 2009. Em 2024, a produção completa 15 anos.

“É onde atingi a minha maturidade estética”, considera. “Tem outras curtas (anteriores) em que eu errei pra caramba. Estava tentando me achar esteticamente, descobrindo a melhor técnica para dirigir um ator ou atriz, posicionar a câmera. Estava tateando, mas nele eu consegui ficar à vontade para fazer, foi muito maduro nesse sentido”, sustenta.

A produção acompanha a pequena Nadí, que esconde os cabelos crespos com um boné por ser alvo de bullying. Ao ter o chapéu retirado por colegas, ela parte em busca de recuperá-lo e, no caminho, encontra uma figura que muda a relação dela com os próprios cabelos.

O curta, que circulou por eventos como a 36ª Jornada Internacional de Cinema da Bahia e o 19º Festival Cine-Ceará, foi gravado, como define Déo, “com pessoas do povo”. “Era muito neorrealista, nesse sentido. Ninguém (da equipe e elenco) ficou rico, tá todo mundo na batalha. É uma pena porque, de lá para cá, eu queria muito que todo mundo tivesse uma condição melhor”, compartilha.

Mesmo com a trajetória bem-sucedida de “Cabeça de Nêgo”, “batalha” é termo que ainda cabe para os caminhos profissionais de Déo, que, no momento, encara os desafios de financiamento para um segundo longa, “Os Olhos do Mar”.

Cinema político e popular

Descrito pelo cineasta como um “drama poético”, “Os Olhos do Mar” já está com roteiro em versão de trabalho e traz uma trama que se passa toda na Praia do Titanzinho, focando no universo do surfe. 

No momento, o projeto captou 15% do orçamento necessário e segue sendo mandado para editais. “Por isso está demorando um pouquinho”, explica. A intenção, no entanto, é levantar os recursos para começar a pré-produção ainda no segundo semestre.

“Pensei que depois do ‘Cabeça de Nêgo’ fosse ficar mais fácil captar, mas não, começa na estaca zero de novo, tem que se provar de novo. A verdade é que é difícil para todo mundo, menos se você está dentro de um esquema de indústria e mercado”
Déo Cardoso
cineasta

Ainda entre as intenções, Déo diz querer filmar o novo projeto com quase a mesma equipe do longa de estreia. “Quero uma equipe enxuta, também com sangue nos olhos e entrega, porque é outra resposta: um filme em comunidade, então tem que ter ‘responsa’ pra filmar na rua. Gosto de filme de rua”, atesta. 

Apesar das dificuldades de levantar recursos, Déo destaca em “Os olhos do Mar” o que chama de “pegada popular”. “Ele tem aquilo que eu acredito no cinema, que é ser político e popular, no sentido de que deve entreter com temas políticos”, define.

Além deste, o artista tem outro projeto em paralelo, em estado mais embrionário: o de uma “dramédia” de futebol intitulada “Bolada”. Parceria com Vinicius Bozzo, o filme passou pelo Laboratório do Porto Iracema das Artes e ainda terá uma primeira versão de roteiro finalizada.

“Gosto muito de comédia, acredito muito na força anárquica e popular dela. Tanto que tem muita gente já querendo saber dele, tem hora que acho que ele vai sair antes do ‘Os Olhos do Mar’ de tanta gente atrás”, aponta.

“A gente está muito pé no chão e não vamos deixar subir para cabeça o projeto. Vamos terminar o roteiro, analisar se está funcionando. Por mim, quero fazer primeiro ‘Os olhos do mar’, que já está maduro. Só falta incrementar a grana”, reforça.