Novo ano, mesma polêmica: prefeitos e governadores são obrigados a reajustar anualmente o piso nacional do magistério? Essa questão foi um quebra cabeça em 2022 e está de volta em 2023. Para este ano, o reajuste, que existe há 15 anos, é de 14,95%, e a guerra contra o aumento já foi declarada por entidades municipalistas.
O reajuste anual do piso salarial dos professores é definido anualmente, independentemente da vontade do presidente da República ou do ministro da Educação.
Mesmo que, por lei, a atualização seja automática, é tradicional que o ministro da Educação anuncie o reajuste no começo do ano, como fez Camilo Santana na segunda-feira (16).
Com o reajuste de 14,9%, o rendimento dos profissionais passa de R$ 3.845,63 para R$ 4.420,55. O percentual já havia sido publicado no Diário Oficial da União no final de dezembro.
Guerra ao reajuste dos professores
No dia seguinte à formalização do reajuste pelo ministro da Educação, o presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, recomendou aos prefeitos brasileiros que não apliquem o percentual. Em coletiva na terça-feira (17), Ziulkoski disse que o aumento é “inconstitucional” e “irresponsável”.
A entidade se baseia em suposta brecha na legislação do Fundeb permanente, aprovado no final de 2020, e articulam uma nova regulamentação que reduza o percentual. A discussão se arrasta há anos e ainda não tem previsão de se resolver.
Valorização do magistério no Brasil
Um ponto que não pode passar sem o devido destaque: o piso nacional do magistério é uma lei, instituída em 2008, após sucessivos aprimoramentos da meta de oferecer aos professores uma remuneração digna. Meta que o Brasil ainda não alcançou.
Temos um das piores remunerações aos profissionais da educação, entre 40 países avaliados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 2021. Agir em sentido oposto ao da garantia de um piso nacional é inconstitucional.
E onde fica o impasse para os gestores públicos? É fato que prefeitos e governadores não querem se indispôr com as categorias, muito menos terem a pecha de que não valorizam os profissionais da educação. Por outro lado, há as contas financeiras que, há anos, estão difíceis de fechar para governos e prefeituras.
Cumprir ou não cumprir o piso?
Pelo cenário estabelecido até este mês de janeiro, os gestores vivem uma situação de instabilidade jurídica e, por isso, podem protelar o cumprimento do piso salarial em 14,9% até que haja uma decisão que unifique o critério de reajuste. O impasse, no entanto, não os exíme de terem a gestão alvo de denúncias da categoria no âmbito judicial.
A resolução do dilema, por enquanto, cabe a cada prefeito e governador. Em qualquer situação, a decisão precisa constar em legislação, indicando o fundamento normativo da decisão, portanto devem ser aprovadas por câmaras e assembleias.
No Ceará, o município de Caucaia foi o primeiro a anunciar o reajuste em 2023, nesta quarta-feira (18). O prefeito, Vitor Valim (sem partido), enviou projeto à Câmara Municipal com o percentual de reajuste de 14,95%.
As opções para os gestores públicos, com base nas discussões vigentes, são as seguintes:
1) Aplicar o piso nacional do magistério
Reajustar o salário do magistério em 14,95% usando como justificativa a Lei do Piso Salarial.
A previsão legal existe desde 2008, na lei nº 11.738. Antes, cada gestor estabelecia por sua conta o percentual. Em duas ocasiões, desde então, o piso já foi alvo de polêmica, em ação dos entes federativos no Supremo Tribunal Federal, pela alegação de que não tinham recursos. O STF, no entanto, tem decidido pelo piso.
E a mudança na lei do Novo Fundeb?
Uma das defesas das entidades municipalistas é de que a Lei do Piso utiliza um critério de cálculo do percentual do antigo Fundeb de 2007. O fundo foi atualizado em 2020, mas não houve uma alteração direta no texto da legislação do piso.
"O piso do magistério proposto na Lei 11.738/2008 se tornou um grande problema para a gestão da educação no país, na medida em que sua atualização, baseada no Valor Mínimo por Aluno Ano definido nacionalmente, tem sido sempre superior ao crescimento da própria receita do Fundo, pressionando o crescimento da folha de pagamento dos professores. Entre 2009 e 2023, a receita do Fundeb aumentou 255,9% e o reajuste do piso do magistério foi de 365,3%", diz nota da Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
Desde 2020, a entidade articula junto ao Ministério da Educação uma resolução para o impasse. O MEC já chegou a acionou a Advocacia-Geral da União (AGU) para orientar a dúvida: o Fundeb permanente de 2020 elimina a regra do piso que se baseava no antigo Fundeb?
Em 14 de janeiro de 2021, o MEC informa que, conforme avaliação da AGU, a lei do piso não estaria mais vigente e seria necessária uma regulamentação específica para a definição do piso. A partir disso, teria sido prometida, segundo a CNM, uma Medida Provisória para que o piso fosse reajustado a partir de agora com base no INPC, um índice inflacionário, com percentual de 10,2%, equivalente à inflação de 2021.
Na época, o então presidente Jair Bolsonaro não cumpriu a suposta promessa e formalizou o maior aumento da história: 33,24%.
Lei revogada parcialmente
Diante do posicionamento da AGU e do MEC, a Comissão de Educação e a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, juntamente com frentes parlamentares em defesa da Educação e do serviço público lançaram nota reforçando ilegalidade no descumprimento do piso.
Um dos pontos principais é o que aponta a revogação apenas parcial da Lei nº 11.494/2007 - a do antigo Fundeb, atrelada ao cálculo do piso salarial. O piso é calculado a partir do crescimento do Valor Anual por Aluno do ensino fundamental urbano dos dois anos anteriores.
Os parlamentares argumentam, na nota do ano passado, que a Lei do Piso Salarial se refere ao cálculo do valor anual por aluno, o VAA, sigla que, no novo Fundeb, apenas "ganhou um novo nome: VAAF, para diferenciá-la da outra nova complementação, o VAAT (Valor Anual Total por Aluno).
"O parágrafo único do art. 5º da Lei nº 11.738/2008 menciona a numeração da Lei nº 11.494/2007 porque essa era então a lei regulamentadora do Fundeb. Mas, o que importa é o conteúdo do que dizia a lei, o critério por ela fixado, totalmente compatível com a nova Lei do Fundeb, que mantém, no VAAF, o mecanismo do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano", diz a nota.
Dessa forma, a revogação parcial da lei de 2007 não alteraria a necessidade de atualização do piso nacional, segundo os parlamentares. O novo Fundeb não revogou a lei anual de reajuste do piso.
Art. 5º O piso salarial profissional nacional do magistério público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês de janeiro, a partir do ano de 2009.
Parágrafo único. A atualização de que trata o caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007.
Nova legislação necessária
Diante da defesa de que a Lei do Piso está mantida, inclusive assegurada pela Constituição e pelo Plano Nacional da Educação (PNE), a partir de entendimentos do próprio STF, os legisladores pontuam que "na ausência de nova legislação, o critério de reajuste do VAA permanece no atual VAAF".
"Ocorre que, enquanto nova legislação que disponha especificamente sobre o novo critério de atualização do piso salarial não for editada, permanecem os atuais critérios de atualização com base no Valor Anual por Aluno (VAAF), sucedâneo do outrora utilizado Valor Anual mínimo por Aluno (VAA)", diz o texto.
Após a recente declaração do presidente da CNM, o MEC apresentou novo parecer jurídico, assinado em 16 de janeiro, por Fabiana Soares Higino de Lima, advogada da União, o qual afirma também que, na ausência de metodologia específica em lei, deve-se utilizar as regras anteriores, de 2008.
Qual critério valeu em 2021 e em 2022?
Em 2021, não houve reajuste no piso devido à queda de arrecadação em 2020. Nas portaria interministeriais que trataram do tema, mesmo com o Novo Fundeb já aprovado, não há questionamento à Lei do Piso.
"Observe-se, que ao indicar o reajuste zero em 2021, o Governo Federal nada mais fez do que aplicar – e, portanto, reconhecer, o critério estabelecido na Lei do Piso Salarial. Não questionou sua legalidade. Ao contrário, nela se baseou para estabelecer o reajuste zero. Assim, estranha-nos essa repentina mudança de entendimento do Governo Federal", diz a nota.
Em 2022, a questão não avançou, e o piso foi aplicado respeitando a regra do Valor Anual por Aluno (VAAF). No Ceará, 150 cidades aplicaram o percentual, conforme levantamento da Federação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal do Estado do Ceará (Fetamce) em julho do ano passado.
2) Aumento salarial pelo INPC
Desde que a Lei do Piso entrou em vigor, as instituições municipalistas tentam desvincular o reajuste do magistério do Fundeb.
“Estamos recomendando que os municípios não adotem esse critério, o município é soberano e que não, pode com base nessa portaria, ser concedido esse aumento”, disse o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, na terça-feira (17).
A meta é aprovar o texto original do Projeto de Lei (PL) 3.776/2008, com a adoção do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) nos doze meses anteriores para reajuste do piso.
No final do ano passado, o juiz Lademiro Dors Filho, da 1a Vara Federal de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, anulou a portaria do Ministério da Educação para reajustar o salários dos professores do Município.
Na decisão, o juiz acatou o argumento de que o Congresso Nacional deveria criar uma nova lei do piso que substitua a lei 11.738/2008.
Ainda que seja uma decisão localizada e de primeiro grau, ela reforça argumentos de entidades municipalistas que tentam, desde que a lei do piso entrou em vigor, desvincular o reajuste do magistério do Fundeb.
Repactuação de repasses
Um dos pontos criticados pela CNM é que o custo do reajuste do piso ultrapassa o recebido pelos entes públicos em recursos do Governo Federal.
“Destaca-se que o piso do magistério não impacta as contas do governo federal, pois quem paga são Estados e Municípios. Já quando se trata de medidas que impactam as finanças da União, como o salário mínimo e o valor per capita do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), há indefinição sobre o reajuste”, criticou em nota a entidade.
De acordo com a legislação, o Governo Federal pode complementar o cumprimento do piso nos casos em que o ente federativo (Estado ou Municípios), “não tenha disponibilidade orçamentária para cumprir o valor fixado”.
Para isso, o ente deve justificar incapacidade da complementação, enviando ao MEC uma solicitação fundamentada e acompanhada de planilha de custos comprovando a necessidade.
Além disso, o ministro da Educação, Camilo Santana, tem apontado como prioridade da sua gestão dialogar com prefeitos e governadores sobre o pacto federativo.
"Até porque, todos os alunos da rede pública do ensino básico do Brasil, quase metade deles são atendidos pelos municípios, 49,2% e 32% são atendidos pelos estados. Portanto, há que ter um regime de colaboração, um pacto federativo pela educação, convocando estados, municípios e a sociedade para que a gente possa construir um grande pacto pela educação brasileira"
O receio de endividamento
Existe ainda a preocupação em obedecer às limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal para pagamento de pessoal.
Em 2021, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná decidiu que o piso do magistério deve ser aplicado mesmo com excesso de gastos de pessoal. A consulta foi feita por um prefeito no Estado.
"As dificuldades orçamentárias e financeiras do município não o eximem do dever legal de efetuar o reajuste para promover a adequação ao piso. Nesse caso, a administração é responsável pela requisição de auxílio à União. No entanto, caso o município tenha extrapolado o índice de despesas com pessoal, a concessão de reajuste para o cumprimento das disposições da Lei nº 11.738/08 (Lei do Piso) deve abranger apenas os profissionais do magistério que recebam vencimentos iniciais fixados em valor inferior ao piso salarial nacional", diz nota do Ministério Público de Contas do Paraná, a partir da orientação do Tribunal de Contas.