A promessa de uma transformação no perfil econômico do Ceará a partir do hidrogênio verde não é para menos: até agora, 35 Memorandos de Entendimento (MoU) para a produção no Ceará e exportação partindo do Estado foram assinados, somando cerca de US$ 34 bilhões de dólares, de acordo com números repassados pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico do Estado (SDE) a esta coluna.
Desses documentos, quatro já evoluíram para pré-contrato - uma etapa entre o memorando e contrato. Os pré-contratos já somam US$ 8 bilhões.
O consultor de energia da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Jurandir Picanço, pontua que o Memorando de Entendimento é um documento inicial em que o empreendedor está “demonstrando interesse em estudar a viabilidade do investimento”. Esse interesse, por si só, já é animador, contudo ainda não é possível saber quais ou quantos desses memorandos irão evoluir para a concretização do investimento.
“No primeiro ou no segundo mês de estudo a empresa pode identificar que não é viável investir por algum motivo. Muitas empresas estudam aqui, estudam em outros países e sabemos que quem escolhe determinado local não vai colocar em outro simultaneamente”, explica Picanço.
Além disso, ele destaca que, por questões estratégicas, a maioria dessas empresas não detalham o andamento dos estudos. “São muito confidenciais, estratégicos, só temos conhecimento quando a empresa se manifesta de forma concreta”, diz. “Quem reservou uma área, é sinal de que já avançou no projeto. O valor de US$ 34 bilhões acaba não tendo muito significado, porque representa apenas um interesse”.
O que tem sido feito para que os memorandos se traduzam em investimento?
Questionado sobre o que seria necessário para que esses memorandos se concretizem e de fato se transformem em investimentos para o Ceará, Picanço acredita que o Estado vem fazendo a sua parte. “Primeiro, é criar um ambiente regulamentado. O Ceará já promoveu isenção de ICMS para a energia usada nesses projetos, assegurou a infraestrutura necessária com o contrato com o Banco Mundial - porque os projetos são privados, mas vai ser preciso gasoduto, subestação. Toda essa infraestrutura é o Governo do Estado que vai suprir”.
“Isso dá segurança ao empreendedor que está estudando e avaliando o que vem sendo feito para a facilitação desse investimento”, afirma Picanço.
Apesar da avaliação de que o Ceará está fazendo o seu papel, o desenvolvimento da matriz energética no Estado ainda carece de um olhar mais apurado para a mão de obra que o setor vai demandar. Para Natasha Esteves Batista, doutoranda em Engenharia Elétrica, pesquisadora, professora e especialista em hidrogênio verde, o Ceará tem condições de preparar essa mão de obra, mas é preciso investir em multiplicadores e pessoas para atuação “não apenas em cargos-base”.
Nós temos que investir em capacitação, principalmente de multiplicadores. As pessoas têm que ser capacitadas para atuação em cargos não somente de base, como a gente sempre tem, mas em cargos que realmente tenham um impacto direto no desenvolvimento do mercado de hidrogênio"
Para ela, esse processo de capacitação de profissionais para atender a esse mercado ainda é muito inicial e pontual e acredita que é um trabalho que precisa ser feito por meio de instituições públicas e privadas. “Eu acredito que a principal demanda que a gente vai ter nesse mercado ascendente é de pessoas capacitadas, então isso que a gente tem fazer a partir de agora: capacitar pessoas que possam multiplicar esse conhecimento e assim capacitar outras pessoas”, reforça Natasha.
Amadurecimento nacional
Se por um lado o Ceará está na dianteira, com cerca de metade de todos os Memorandos de Entendimento para produção de hidrogênio verde já assinados no País, conforme Picanço, por outro lado, o Brasil “está atrasado”. Ele ressalta que, para atender ao mercado externo, o empreendedor de certa forma “independe da legislação brasileira”, mas “para criar o mercado interno é preciso uma regulamentação”.
“Felizmente, está avançando, mas com muito atraso. Vários países já estão com seus projetos de hidrogênio verde e o Brasil agora que tem um projeto concreto, que é o Marco Regulatório do Hidrogênio Verde que foi para o Senado na última semana. Mas poderíamos ter isso há dois anos, porque para desenvolver esse mercado internamente é preciso de políticas públicas. Pelas forças econômicas, é mais difícil, porque ainda é caro, então não vai mudar”, explica Picanço.
Apesar de ser uma energia mais cara, assim como outrora foi a energia solar, Picanço frisa que todos os estudos acerca do assunto dizem que vai ficar mais barata a partir do desenvolvimento do mercado.
Já temos essa experiência com as energias eólica e solar, que primeiramente tinham um custo lá nas alturas. Se fazia aquilo porque era energia limpa e hoje são as duas formas de energia mais competitivas. Porém, para isso, foi preciso passar por todo um processo de amadurecimento"
Esse amadurecimento é o que algumas nações como Estados Unidos e alguns países da Europa estão buscando, ao subsidiarem a energia limpa. “Então digamos que a Alemanha vai comprar mais caro e vai vender no mercado interno mais barato, subsidiando essa diferença na certeza de que vai desenvolver o hidrogênio verde e vai ficar mais barato”.
Para o pesquisador da FGV Energia Vinícius Botelho, o Ceará é pioneiro quando se trata das movimentações para desenvolver o hidrogênio verde e a quantidade de memorandos assinados indica esse pioneirismo. Ele relaciona ainda o grande número de memorandos ao “potencial energético de fontes renováveis, infraestrutura de portos e proximidade com a Europa”. “A Europa é o grande mercado, então esse posicionamento acabou prevalecendo na estratégia das empresas, que buscam se firmar no melhor local para exportação”.
Vinícius corrobora que os memorandos representam intenções, mas lembra que os pré-contratos assinados já geram uma demanda energética e de infraestrutura de rede expressiva. “Esses pré-contratos já representam uma potência muito grande para a região e isso faz com que isso se torne um desafio, mas que vai ser tratado naturalmente com a expansão do sistema como um todo. Um desafio que já vem sendo observado, para garantir que a gente tenha geração e transmissão eficientes”.
O pesquisador também vê potencial no uso do hidrogênio verde no mercado interno, seja como matéria-prima ou como vetor energético. “A demanda nacional é um ponto essencial para que não sejamos apenas exportadores de uma commodity. Uma oportunidade muito interessante vai na linha de expansão da produção de fertilizantes, de amônia para o mercado interno, já que nós importamos mais de 80% do nosso fertilizante”.