Nos últimos anos, notadamente em manifestações em favor do presidente Jair Bolsonaro, alguns de seus apoiadores evocaram o artigo 142 da Constituição para pedir intervenção militar e a destituição dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O tema voltou à tona após o resultado do segundo turno das eleições presidenciais, com a derrota do atual chefe do Executivo.
Contudo, a defesa do poder moderador das Forças Armadas já havia sido usado durante atos em 2019; em 2020, no contexto da pandemia de Covid-19; e à época das comemorações do 7 de Setembro de 2021.
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem
Foi no contexto das manifestações sobre a Independência do Brasil no ano passado que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general da reserva Augusto Heleno, tratou do assunto em uma entrevista.
"Não acredito em intervenção no momento. Essa intervenção poderia acontecer num caso muito grave. Discordo até das considerações que fazem sobre o artigo 142, um artigo bastante claro, basta ler com imparcialidade. Mas não acredito que venha a ser empregado na situação atual e espero que não seja empregado jamais"
Talvez não seja tão claro. A "garantia dos poderes constitucionais", ainda que seja uma expressão um tanto vaga, não pode contemplar a interpretação de um "poder moderador" no contexto de todo o texto da Constituição.
Análise textual
Uma análise textual elementar, aliás, tentará entender quais são esses poderes constitucionais que as Forças Armadas devem garantir. Uma conclusão óbvia é que eles podem ser os "Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário" (Art. 2º).
Ou seja, uma intervenção que venha a suprimir algum órgão destes poderes não parece uma interpretação razoável. Além disso, a Garantia da Lei e da Ordem, a GLO, pode ser requisitada por qualquer um desses poderes.
Guardião da Constituição
Se o artigo 142 pode se tornar um tanto confuso quando lido fora de contexto. Por isso, temos o STF para dar o devido entendimento. Goste-se ou não, esse é um dos papéis do Guardião da Constituição.
Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada em 2020 pediu ao Supremo que indique a correta interpretação do artigo. O ministro relator Luiz Fux foi claro:
A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Forças Armadas acima do Estado?
Voltando às discussões da Assembleia Constituinte, Em sua manifestação, Fux lembrou das discussões da Assembleia Nacional Constituinte e trouxe uma delas em seu parecer. No dia 27 de julho de 1987, o General Euler Bentes Monteiro disse as seguintes palavras sobre a redação do que viria a ser o artigo 142:
“A questão fundamental, conceitual: a Constituição deve definir, para as Forças Armadas, atribuições condizentes ao modelo democrático? Acho claro que sim. Há, assim, que desfigurar o papel histórico do chamado poder moderador. A intervenção das Forças Armadas no processo político, se admitindo como destinação constitucional, irá colocá-la acima dos poderes políticos do Estado e acima do próprio Estado.
(...) escrever uma Constituição admitindo uma escala de intervenção, que não sejam as escalas de estado de emergência ou de alarme ou estado de sítio, etc., mas um estágio superior a tudo, em que se dê a completa liberdade de ação às Forças Armadas (...) eu não julgo que isso seja um estado democrático. Admito, sim, como um estado totalitário, um estado militarista. Nós acabamos de viver essa experiência.” (Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento), 23 de julho de 1987, pp. 49-62).
Golpe de Estado
Ou seja, atribuir um poder moderador a qualquer instituição da República é uma contradição aos princípios fundamentais do texto constitucional. As FA não têm previsão legal para interferir em um dos poderes, mesmo que cumprindo a ordem do chefe de um outro. É inconstitucional.
Não existe “intervenção militar constitucional”. Um dos poderes não pode se impor diante dos outros, ignorando os pesos e contrapesos definidos na Constituição, sem rasgar seu texto. Isso seria um golpe de Estado.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria"
Precisamos ter em mente que todo o poder emana do povo, mas esse poder é exercido “por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Coisas da democracia.
Assembleia Nacional Constituinte
As tratativas para o que se tornou o artigo 142 começaram em 1987, quando em 1º de fevereiro era instituída em Brasília a Assembleia Nacional Constituinte, que encerraria os trabalhos no dia 22 de setembro do ano seguinte, ao entregar o texto da Constituição promulgada em 5 de outubro. Após 24 anos sob um Regime Militar, era instituído no Brasil um Estado Democrático de Direito. A Nova República estava consolidada.
Mas não foi sem emoção. Os doutrinadores do Direito classificam a constituição como eclética no quesito ideológico. Ou seja, diferentes correntes ideológicas buscaram um equilíbrio através dos debates políticos.
Pois é. No todo, podemos falar em equilíbrio. Em pontos específicos, há construções textuais mais truncadas, mostrando que o consenso foi difícil de alcançar. É o caso do artigo 142.
À época, da redação, relatos dos bastidores da constituinte apontaram para uma pressão de militares, para que este artigo saísse como está até hoje. Mesmo enfraquecidos ao fim do regime, o lobby funcionou.
Agora, 34 anos depois, há quem veja nesse texto o reconhecimento de um "poder moderador" das Forças Armadas, conceito não se via desde o Império, mas que ganhou força em alguns meios com a atual crise institucional do País.