Se, por um lado, a “brincadeira” do cozinheiro Maycon, do BBB 24, causou revolta e diversas críticas pelo flagrante caso de capacitismo naquele que talvez seja o programa de maior audiência na TV brasileira atualmente, por outro, o serviu para pautar o assunto e ajudar a esclarecer sobre o as consequências do preconceito, que é estrutural no País.
Na edição do Big Brother Brasil que estreou nesta semana, Maycon sugeriu, em tom jocoso, colocar um nome no "cotinho" do atleta paralímpico Vinicius Rodrigues, referindo-se à perna amputada do companheiro na Prova do Líder.
A conduta preconceituosa tem implicações legais e pode ser punida pela Justiça. Se a ofensa for considerada um ato de discriminação, o autor da ofensa está sujeito a responder criminalmente.
A coluna conversou com o advogado Emerson Damasceno, uma das maiores autoridades do País na defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Não à toa, ele preside na OAB Ceará a comissão que tem este fim. Além disso, ele também preside a Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo (CEDDPA) do Conselho Federal da OAB.
Ele explicou, resumidamente, que capacitismo “é o preconceito contra pessoas em função de sua deficiência” e lembrou que deficiência é uma característica de milhões de brasileiros.
Capacitismo pode configurar crime
“O capacitismo pode se operar de diversas formas e pode vir, sim, a configurar crime em algumas situações que já estão previstas no Direito Penal brasileiro”. Uma delas, exemplifica o advogado, é a injúria contra uma pessoa em função de sua deficiência. Isso, alerta, pode “se tornar o que está tipificado no código penal brasileiro. Uma injúria qualificada em função da deficiência de uma pessoa”, reforça.
Negar a matrícula a um estudante por ter ele uma deficiência é "também é tipificado com o crime nosso ordenamento jurídico”.
“O ato de discriminar em si, a discriminação, também é um crime que pode punir, inclusive, de um a três anos de reclusão, além de multa; ou de dois a cinco anos de reclusão, além de multa, se cometido através de um mecanismo de comunicação social”. Este crime está previsto no artigo 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Emerson Damasceno registra ainda que o capacitismo “está para as pessoas com deficiência como, por exemplo, o racismo está para as pessoas negras.
O capacitismo vem do preconceito e isso pode gerar uma discriminação que pode configurar um crime”
Denúncia criminal e processo cível
O advogado orienta que a vítima de crimes em função da sua deficiência faça uma denúncia na Delegacia de Proteção ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (DPIPD), ou mesmo no Ministério Públicos.
Além disso, defende Damasceno, a vítima pode acionar a justiça no âmbito cível, “pedindo indenização em função daquele tipo de cometimento de crime”.
“É necessário que as pessoas, quando se depararem com esse tipo de situação, denunciem às autoridades, aos Ministérios Públicos, denunciem à delegacia especializada, formule ali uma notícia-crime”. Eventualmente, acrescenta, o interessado também pode procurar um advogado ou defensor público para acionar na Justiça “pessoas jurídicas ou físicas quando sofrerem qualquer tipo de discriminação, seja ela já configurada como crime ou mesmo que seja um fato antijurídico que gere direito a indenização”.
Capacitismo é estrutural
Emerson Damasceno reforça que o capacitismo é estrutural mesmo em um País tão diverso como o Brasil. “Um exemplo claro é o que acontece com a presença de uma pessoa em um programa, um reality da envergadura do BBB”.
Segundo ele, a pressão para que o programa tivesse entre seus participantes pessoas com deficiência aconteceu “justamente porque a sociedade é rica e é diversa de pessoas com e sem deficiência, altas e baixas, pessoas brancas e pretas, e essa diversidade étnica, racial, em relação a deficiência ou não, é o que nos torna uma sociedade, um país mais rico”.
Citando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2022, o advogado apontou que existem “mais de 18 milhões de pessoas com deficiência, aproximadamente 9% da população, sendo que, aqui no Nordeste, mais de 10% da população tem algum tipo de deficiência e o Ceará é o segundo com o maior índice de proporcionalidade de pessoas com deficiência do País. Fica atrás apenas de Sergipe. O Ceará tem cerca de 11%”.
Dada essa representatividade, “a gente tem que levar essa pauta de forma diária e também fazer chegar às pessoas, que não se calem, não se deixem intimidar”.
Uma agressão, um crime cometido por uma pessoa contra alguém com deficiência, não diz nada sobre a pessoa vítima, mas diz tudo sobre quem pratica esse tipo de crime”
Sobre o trabalho na comissão da OAB Ceará, Emerson Damasceno destaca que o grupo recebe consultas da sociedade e também encaminha eventuais denúncias. “A gente tem tido uma atuação bem rigorosa em relação a isso, a fim de que see tenha uma sociedade menos capacitista e muito mais inclusiva”.
Inclusão e convivência contra as barreiras
O advogado conclui afirmando que acessibilidades, “que são várias: urbanísticas, de transporte, comunicação, atitudinal, tecnológica, enfim, essas acessibilidades são meios para chegar ao fim. E qual é o fim? É justamente a inclusão. E não existe inclusão sem convivência. Cada vez mais a gente tem que estar convidando, participando, retirando, eliminando as barreiras, que são inúmeras, barreiras criadas pela sociedade”.
"Pessoas com deficiência não são exemplos de superação, porque elas não têm que superar a própria deficiência. A deficiência é uma característica de milhões de brasileiros e brasileiras. O que tem que ser eliminado e superado são justamente as barreiras que a própria sociedade cria. Por isso mesmo que a gente fala que cidades é que são deficientes e não as pessoas”, finaliza.