Dia 20 de novembro comemora-se o dia da consciência negra e do combate ao racismo no país, dia em que Zumbi dos Palmares teria encontrado a morte pelas mãos do braço armado do colonizador, no ano de 1695. Ele foi instituído no ano de 2003 e veio, em grande medida, substituir o dia 13 de maio, data da abolição da escravidão, que nunca foi vista pelo movimento social negro e antirracista como uma data a ser comemorada, já que o 13 de maio exclui o protagonismo negro na luta pela liberdade e mascara o fato de que a abolição trouxe para os libertos apenas exclusão social e marginalização, já que não foi acompanhada de medidas de reparação ou integração social. O quilombo de Palmares, que resistiu por mais de um século as tentativas das autoridades luso-brasileiras de desbaratá-lo, é um testemunho de que os africanos e afro-brasileiros nunca deixaram de resistir a ordem escravista e nunca abriram mão de afirmar sua condição de seres humanos, com direito a liberdade e a dignidade.
O dia 20 de novembro serve para não esquecermos que as marcas da escravização de seres humanos, legitimada, dentre outras formas, pela cor diferente de pele, que indicaria uma pretensa inferioridade natural, evolutiva, das chamadas raças humanas, continuam presentes em nossa sociedade. Serve para que encaremos o fato de que a população de origem africana ainda não superou a marginalização e o estigma que a escravização lhes trouxe. Serve para que tomemos consciência de que o racismo é um dos elementos estruturantes da ordem social brasileira, a pretensa diferença entre os ditos brancos e aqueles que são classificados como gente de cor aparece em cada momento da vida social brasileira, pois povoa mentes e subjetividades, configura valores e mentalidades, se encarna em corpos e gestos, muitas vezes inconscientes. O racismo se entoca na interioridade de cada brasileiro e brasileira, estrutura as hierarquias sociais e legitima e justifica desigualdades e injustiças sociais. O racismo leva a morte de milhares de pessoas, anualmente, no país, justifica e provoca o extermínio de pessoas, o tratamento violento, a injuria e a humilhação de seres humanos, só porque não “nasceram com a cor adequada”.
No Brasil a cor constitui uma marca que diferencia e hierarquiza, que confere e retira status social, que suscita o funcionamento de todo um imaginário perverso e pervertido que se construiu ao longo de séculos de escravização e desonra do povo negro. Como se livrar da pele não é possível (só em casos raros de pessoas milionárias como Michel Jackson, que nem por isso parecer ter se livrado das marcas de sua origem) o sofrimento psíquico e físico de uma pessoa negra no país é cotidiano. Com a ascensão da extrema-direita no país, o racismo que, antes, era velado e envergonhado, denegado quase todo o tempo, passou a ser manifestado de forma direta e até orgulhosa. As falas e atitudes monstruosamente racistas de seu mito, fez com que se tornasse uma prática corrente a injúria, a agressão e até a ameaça de morte motivada por um pretenso desrespeito de uma pessoa negra a pretendida superioridade da pessoa branca. A emergência política da população negra, a conquista de política de reparação, de políticas públicas compensatórias, é um dos motivos de que a mensagem racista do fascismo venha encontrando receptividade cada vez maior. O golpe de 2016 e a vitória de Bolsonaro estão lastreados no racismo, na recusa e ódio as cotas raciais nas universidades e nos serviços públicos, na oposição ao reconhecimento do direto a terra das comunidades quilombolas, no medo ressentido em relação a ascensão de pessoa negras a postos de destaque na esfera pública (a fala de Michele Bolsonaro agredindo o ministro Silvio Almeida, chamando-o de defensor de bandides é claramente racista). O suprematismo branco esteve no poder com o governo da extrema-direita, vários episódios demonstraram isso.
Para quem duvida que o racismo continua sendo uma chaga na sociedade brasileira, quem diz que quem fala em racismo está com vitimismo, está com mimimi, nessa semana da consciência negra ocorreu um episódio, que até pela repercussão que teve, serviu como um desmentido retumbante contra esse tipo de discurso, serviu como sintoma trágico do caráter estrutural e cotidiano do racismo no país.
A histórica porta-bandeira da Escola de Samba Portela, Vilma Nascimento, conhecida como o Cisne da Passarela, foi uma das personalidades negras convidadas para ser homenageada em cerimônia na Câmara dos Deputados, em Brasília, alusiva ao dia da consciência negra. No dia seguinte, quando retornava para o Rio de Janeiro, na companhia de sua filha Danielle Nascimento, D. Vilma, com 85 anos, passou, como é obrigatório - não se pode não passar mesmo que não se queira -, pela loja da Duty Free Dufry Shop, quando a filha resolveu comprar chocolates para seus filhos. D. Vilma, como costuma acontecer com todos nessa circunstância, ficou indo de gondola em gondola contemplando os produtos enquanto sua filha pagava a mercadoria comprada. Quando se dirigiram a saída foram barradas por uma funcionária que as acusavam de estarem saindo com mercadorias sem serem pagas. Possivelmente a funcionária deve ter sido alertada por quem opera o sistema de vigilância da loja, que deve ter ficado de olho ao ver uma mulher negra a perambular pela loja e seu olhar racista deve ter tido a impressão de que a sexagenária baluarte da Portela, que estava digna e belamente vestida (não podem sequer alegar o famoso preconceito contra o mal vestido, que é o preconceito contra o pobre), teria colocado algo em sua bolsa.
D. Vilma foi então intimada a esvaziar a sua bolsa, ali no meio da loja, na frente de todo mundo que passava. Imagine-se a vergonha, o constrangimento, a revolta que deve dar ser tratado assim sem que qualquer motivo se tenha dado para isso. Sequer a discrição ela teve direito. Quando se recusou a esvaziar sua bolsa, exigindo que a polícia fosse chamada para que o fizesse na frente deles, não foi atendida, prolongando a situação de constrangimento. Ao ser questionada porque estava fazendo aquilo a funcionária nada dizia, só voltava a exigir que ela esvaziasse a bolsa. Danielle chegou a fazer a pergunta óbvia, se seria por causa da cor delas que aquela cena absurda estava se passando, no que também não obteve resposta. Vendo que a polícia não chegava e se aproximava a hora do voo, a filha de D. Vilma a convenceu a esvaziar sua bolsa na frente de todos ali. Quando o fez, a funcionária com uma nítida impressão de decepção no rosto, se comunicou, presumivelmente, com quem tinha feito a denuncia e lhe disse que nada havia encontrado. Sem sequer pedir desculpas, simplesmente liberou as duas para que pudessem sair da loja e se encaminharem para o portão de embarque. Danielle, que havia filmado a cena lamentável, compartilhou as imagens na internet e fez um depoimento de como se sentiram humilhadas, de que ela entrou no avião aos prantos, de como sua mãe estava arrasada.
Curiosamente, mas não por mera coincidência, a Portela está preparando para o ano que vem um desfile que desenvolverá o enredo intitulado “Um defeito de cor”, baseado no romance da escritora Ana Maria Gonçalves. O título do enredo parece ser explicativo do que aconteceu com D. Vilma Nascimento no aeroporto internacional de Brasília, porque ela foi a capital do país para ser homenageada e retornou humilhada e agredida: tudo se explica apenas porque D. Vilma, como bem percebeu sua filha, para o racismo estrutural brasileiro, tem um defeito de nascença, tem um defeito não apenas físico, mas também moral, subjetivo, de caráter: D. Vilma tem um defeito de cor. Ela não precisa fazer nada para ser julgada, ela é julgada todo tempo por sua aparência. Não é preciso ter visto com nitidez ela se apropriar de algo que não é seu, para se ter convicção que uma senhora distinta, de 85 anos, é uma reles ladra, uma descuidista, basta ver a cor de sua pele, qualquer gesto seu se torna previamente suspeito porque vem de uma mão negra, não importa que ela tenha empunhado, por anos, de forma gloriosa, a bandeira de sua escola, que ela seja uma personalidade do samba, que seja uma referência para toda e qualquer menina que queira portar um pavilhão de escola de samba.
Não importa que D. Vilma seja a própria encarnação da ancestralidade negra, das mães negras, da Iyá centenária, que a escola vem homenagear ano que vem, com seu enredo. Mulheres negras, as mais discriminadas, as maiores vítimas do racismo, do sexismo e da misoginia, aquelas que, em grande medida, foram responsáveis não só pela reprodução uterina de seus filhos, mas que garantiram a transmissão de traços culturais, cultuais e linguísticos, que foram fundamentais na resistência negra, na forja de uma identidade e de formas de vida próprios. Através do refazimento do caminho imaginário percorrido por Luiza Mahim, a possível mãe do intelectual negro Luiz Gama, a Portela busca homenagear todas as mães pretas, como D. Vilma Nascimento que, mesmo tendo que lidar todo dia com o rebaixamento, o desrespeito, a injuria, a exploração, a violência, a discriminação, trazidos pelo racismo, foram capazes de criar, além de seus filhos (quando a crueldade da escravidão não os afastou delas ou exigiu que os matasse ainda no nascedouro), manifestações culturais poderosas como o samba, o candomblé, o carnaval, a escola de samba, o que esses pretensos brancos não foram capazes. As mães negras aprenderam a sobreviver e viver nesse país racista e cruel e, mesmo assim, distribuir amor e generosidade, até mesmo para filhos e filhas dos brancos, aos quais amamentaram, embalaram e educaram, muitas vezes, no lugar de seus próprios filhos. D. Vilma Nascimento, basta olhar para ela (como puderam ter coragem de desrespeitar uma mulher como essa?), é encarnação do amor e da dignidade, os funcionários, pretensamente brancos do Duty Free, mulheres, pasmem! são a encarnação do desamor, do preconceito, do racismo cotidiano que envergonha e adoece esse país de população majoritariamente negra e mestiça, mas que, como essas funcionárias, pardas, acha que é branca. Para coroar a semana da consciência negra, na votação na Câmara Federal, do projeto de lei que torna o dia 20 de novembro feriado nacional, o deputado do Partido Liberal gaúcho Bibo Nunes, justificou seu voto contrário usando a frase que decorava a fachada do campo de concentração nazista de Auschwitz: “O trabalho liberta”. A sociedade brasileira é adoecida de racismo e toda semana dá mostras disso, faz sintomas aterradores como esse.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.