No último dia 13 de maio se comemorou a data em que oficialmente a escravidão foi abolida, como forma de trabalho, no Brasil, através da chamada Lei Aurea. Em 13 de maio de 1888, tornávamos o último país das Américas a pôr fim ao trabalho escravo. Nossas elites escravistas conseguiram procrastinar o término da instituição da escravidão por quase um século, dado que ainda quando do reconhecimento da independência do Brasil, por parte da Inglaterra, em 1825, já havia a promessa da extinção paulatina do comércio de escravizados. Mas a forma como a abolição foi realizada, sem prever qualquer mecanismo de reparação ou de apoio aos negros saídos da escravização, condenou a maioria da população negra a exclusão social.
A abolição veio acompanhada de um projeto de branqueamento da população, de substituição da mão-de-obra escrava pelos imigrantes europeus, dificultando, ainda mais, o acesso da massa de homens e mulheres de cor ao mercado de trabalho.
A expansão das relações de trabalho capitalistas no país se fez às custas da destinação das profissões mais mal remuneradas, das atividades periféricas, à população afrodescendente. A manutenção da concentração da propriedade da terra, a exigência da compra para ter acesso a propriedade rural, que vinha desde a lei de 1850, condenou a população negra a permanência nas terras dos antigos senhores, submetidos a relações de trabalho muito próximas das relações escravistas, caracterizadas pelo caráter compulsório e pelo não assalariamento, ou a migração para os centros urbanos, onde vão morar precariamente em áreas públicas ou em terras devolutas.
No campo houve também a opção de se alojarem nas franjas dos latifúndios e, em casos excepcionais, em terras doadas pelos antigos senhores, visando a permanência deles no meio rural e impedindo, assim, a migração da mão-de-obra, notadamente em áreas onde as atividades econômicas estavam em crise e/ou declínio, dificultando a importação de imigrantes.
Esse foi o caso da área que depois será nomeada de Nordeste, onde a crise de suas principais atividades econômicas, como a produção do açúcar e do algodão, levou a substituição da escravidão por formas de trabalho compulsórias, não assalariadas como: o cambão (obrigação de se trabalhar três dias de graça nas terras do patrão em troca do acesso a uma moradia precária e um pedaço de terra para plantar produtos de subsistência), a meiação, a parceria, a moradia, etc.
As mulheres negras continuaram tendo como única opção de trabalho as tarefas que já realizavam quando da escravidão: o trabalho no eito e, principalmente, o trabalho doméstico, onde continuaram sujeitas à violência, à não remuneração em dinheiro e aos abusos e sevícias de natureza sexual. O caso recente de libertação de uma mulher negra que, em plena Zona Norte, da cidade do Rio de Janeiro, era submetida a trabalho análogo ao de escravizada, pois há setenta e dois anos trabalhava na casa sem receber salário ou auferir qualquer benefício trabalhista, mostra como o 13 de maio não significou o fim das relações escravistas no país.
O racismo estrutural presente na sociedade brasileira levou a que os negros fossem completamente marginalizados do projeto de nação e de desenvolvimento do país, que foram alicerçados na ideia de branqueamento da raça e, sub-repticiamente, de eliminação progressiva do povo negro, entregue à própria sorte.
O eugenismo, que marca boa parte do pensamento brasileiro, do início do século XX, advogava que a mestiçagem com os imigrantes brancos e a morte paulatina das raças inferiores, notadamente da população negra, regeneraria racialmente o país. O abandono das populações negras, notadamente no campo da educação e da saúde pública, foi mais do que negligência, foi em muitos casos, um projeto deliberado da exclusão e de paulatino extermínio da presença negra entre nós.
Para termos uma ideia de como a abolição oficial da escravidão não significou, necessariamente, a sua abolição de fato nas relações sociais cotidianas, basta prestarmos atenção ao fato de que, por muito tempo, o pertencimento a alguém, mesmo que no plano simbólico, mesmo que não fosse do ponto de vista jurídico, era o que conferia uma identidade aos homens e mulheres pobres e de cor no país. Escutei, muitas vezes, um empregado do meu pai, um senhor negro, já idoso, lembrar com uma certa nostalgia da época em que era “gente do coronel Chico Heráclito”.
Ou seja, o que conferia identidade a ele, o que lhe dava um lugar no mundo, o que atribuía a ele até certo prestígio, era ter pertencido ao coronel Francisco Heráclito do Rêgo, dono de cerca de vinte fazendas, no município de Limoeiro, em Pernambuco, um prolífico patriarca que foi pai de mais de vinte filhos naturais, muitos deles com mulheres de cor, que faziam parte de sua gente.
A expressão “ser gente de alguém” remete diretamente a instituição da escravidão, em que os escravos recebiam o sobrenome de seus senhores e em que eram identificados por ser propriedade de alguém.
Dizer-se gente de alguém era ressaltar os vínculos de dependência, era dizer que só se era gente, só se alçava a condição de humano por estar sobre a proteção, por ser uma extensão da vida e do poder de um dado homem poderoso.
A internalização da subalternidade, que era um traço fundamental da produção da subjetividade de um escravizado, continuou sendo requerida daqueles homens e mulheres negras e pardas que, saídas da escravização, quisessem encontrar um lugar no mundo, quisessem gozar da proteção e das benesses advindas de um homem ou de uma família branca.
Os negros e negras que preferiram viver as suas próprias custas, que se rebelaram contra a continuação da lógica da casa-grande em seu cotidiano, que buscaram autonomia, que tentaram transformar a liberdade legal em liberdade real, que buscaram encontrar brechas na estrutura racista, para construírem suas próprias formas de vida, outros modos de existência, foram, muitas vezes, taxados de rebeldes, criminosos, vagabundos, malandros, perigosos. Foram as vítimas preferenciais da polícia, dos órgãos de segurança e repressão do Estado. Para eles se voltaram os olhos assustados, preconceituosos e repressivos de médicos, assistentes sociais e cientistas sociais.
Os olhos curiosos de jornalistas, folcloristas, etnógrafos, escritores, artistas prescrutaram suas moradias, os cortiços e favelas em que passaram a residir, suas festas, suas diversões, seus batuques e sambas, suas rixas e dissenções, suas práticas religiosas e rituais, seus cantos e encantos. Seus corpos foram avaliados e desejados, foram pintados, descritos, caricaturados, fotografados e filmados, muitas vezes indo parar nas páginas policiais ou nos arquivos policiais e judiciários.
O corpo negro vivendo e sobrevivendo entre o desejo e a sedução e a repulsa e a abjeção. As fantasias sexuais brancas, seus desejos, muitas vezes perversos, convivendo com os fantasmas de um corpo negro animalizado e disponível apenas para uso e deleite dos brancos, como foi durante todo o período da escravidão.
O que significa ser gente de alguém? Significa não ter identidade própria, não pertencer a si mesmo. Se o teu status é dado pelo pertencimento a um outro, se você se torna alguém através do nome do outro, é porque você mesmo tem pouca valia, quase não tem sequer existência. Se dizer gente de alguém é obliterar seu próprio nome, sua própria identidade, para se perder e se dizer através de uma categoria que te torna anônimo e sem nome.
O orgulho com que Sr. Octacílio, um homem com o rosto marcado pela varíola, um homem capaz de contar histórias que me encantavam, se dizia gente de um coronel, mostrava que ele considerava que esse fato dava a ele um cero status. Se um dia fora gente do coronel Chico Heráclito, o último grande coronel do sertão, era porque possuía qualidades de coragem, valentia, honestidade, capacidade de trabalho, fidelidade, que aquele potentado fora capaz de perceber. A morte do coronel, em 17 de dezembro de 1974, a debandada de sua gente, era narrada com clara nostalgia. Sr. Octacílio dizia que ele era como um pai para muitos que, como ele, sequer conhecera o seu genitor.
O abandono a que foram entregues os ex-escravizados, a miséria, a falta de oportunidades de ascensão social e de inserção no mercado de trabalho, somados aos obstáculos impostos, desde a escravidão, à constituição de famílias, fez com que os negros fossem vistos como culpados da própria precariedade da instituição familiar entre eles, pelos diversos arranjos familiares que tiveram que construir ao arrepio das leis e normas vigentes, conferindo, muitas vezes, às mulheres e as mães um papel que não era comum no interior das famílias brancas.
Quando o presidente da República, homenageia a seu modo, como representante dos senhores de escravizados, o 13 de maio, reafirmando que negros se medem em arrobas, como gado (de gado ele parece entender), fica explicitado o quanto a data comemorada pouco significou para uma efetiva abolição das estruturas sociais racistas que continuam funcionando em nossa sociedade, gerando exclusão, preconceito, hierarquias e discriminações.
Assim como o presidente, que sempre diz não ser racista por ter um negro de estimação, que o segue para todo lado, muitos ainda pensam e tratam os pretos e pretas como se fossem de sua propriedade, bichos de estimação, gente inferior, destituída de direitos e identidade própria, uma espécie de extensão de sua vontade e de seu poder, um objeto, uma coisa, a ser usado e abusado. É preciso que não consideremos normal e natural que alguém se diga gente de algum poderoso de plantão. Todo mundo merece ser gente, ser humano, em si mesmo e por si mesmo, gente feita para brilhar (e como os negros e negras foram capazes de criar, de inventar coisas brilhantes, como: o carnaval, as escolas de samba, apesar de tudo, para espanto dos brancos) e não para morrer de fome, como diz o poeta Caetano Veloso.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.