Desde que surgiu no cenário regional brasileiro, lá no início do século XX, que um dos traços que marca a especificidade dessa parte do país, é a itinerância de boa parte de sua população. Quase sempre associada ao fenômeno das secas, das retiradas provocadas pela escassez de água e alimentos para os humanos e os animais, o nomadismo das populações pobres dessa área do país é um traço permanente e que vai muito além das estiagens como motivação.
Para boa parte da população nordestina, suas vidas são feitas de travessias e atravessamentos, do bater léguas em busca de uma terra prometida que nunca chega. Invisível para boa parte da produção artística e literária sobre a região, concentrada na espetacularidade trágica dos grandes êxodos em época de calamidade, essa migração de todos os dias, de todas as épocas, de todas as condições se queda pouco tratada ou falada.
Grande parte da população nordestina, ao longo dos séculos, migrou em busca de uma terra para se arranchar, para plantar, para ter uma tapera para chamar de sua. O monopólio da terra, os grandes latifúndios nas mãos de uma elite diminuta, fez da busca por um chão a tarefa de vidas inteiras. Vagar das terras de um potentado para as terras de outro, colocando seus braços a serviço de tarefas de vida ou de morte, colocando a força de trabalho de toda a família, em troca, muitas vezes, do acesso precário a um roçado, um litro de leite, o sabão, o querosene, o sal, o açúcar.
Se arranchando na tapera precária fornecida pelo patrão, nada podia ter de seu, pois logo uma outra travessia podia começar e todos os teréns tinham que caber no interior da rede de dormir, que pendurada no ombro, servia de mala e de objeto de transporte para o pouco que possuía.
Desde o fim da escravidão que, durante a safra da cana-de-açúcar na mata, muitos desciam dos sertões para trabalhar no corte da cana, para transportar como almocreves a safra para os engenhos. Essa gente já descia para o que chamavam de Sul, muitos ficavam pelos manguezais, construindo com a lama viscosa as palafitas onde iam dividir a vida com siris, caranguejos, pitus, dos quais se alimentavam e aos quais forneciam o alimento de seus restos, de suas próprias fezes.
Vidas feitas de travessias a vau, nos rios, nos riachos, nas marés, vidas flutuantes e balançantes como o solo espesso e mole em que se atolavam. Vidas feitas de travessias do mar, da luta cotidiana com as marés, com as ondas, com o sol e o sal. Vidas assentadas em jangadas precárias, caiçaras a herdar dos antepassados indígenas e africanos jeitos de construir e habitar umas velas que lhe traziam a vida, mas que também, muitas vezes, os faziam enxergar a morte na tempestade, na fúria de um mar encapelado.
Gente acostumada a arrastar a vida e a rede, vida arrastada e de arrastão, vida de travessias sem fim por rotas e caminhos que nunca deixavam os seus rastros, se fechando líquidas, ao passar desses corpos enrijecidos e derreados pela faina incessante do mar.
Quem se lembra do atravessar sem fim das caatingas pelos vaqueiros, a pastorear rebanhos que não eram seus, a ficar sem emprego no primeiro desentendimento com o patrão, perdendo os bezerros que a “sorte” podia lhe trazer. Os nordestinos pobres sempre estiveram em fuga de um poder que os aplastava, os humilhava, os explorava, os deixavam com as calças na mão. O vagar entre um município e outro, o pegar a estrada com as trouxas na cabeça e ir arribar em outra ribeira, na terra de outro coronel, se tornar gente do poderoso de plantão, era destino da maioria. Difícil o nordestino que nasceu e se criou no mesmo lugar.
Os sociólogos de plantão, como Djacir Menezes, a explicar essa tendência ao nomadismo pela ancestralidade indígena, quando sempre se tratou da inquietude da miséria, do ter que se mexer para pelo menos justificar que não morreu de fome, em pé, sem tomar uma atitude. Em cada partida uma perda, mas em cada uma delas uma esperança, uma espera por dias melhores, pelas bênçãos dos céus, pela ajuda do santo, que levou tantos a migrar, em busca da terra abençoada.
Quantas vilas e cidades não nasceram do ajuntamento e do trabalho dessa gente agarrada a esperança de um milagre, arranchada sob a proteção de um padrinho, explorador da fé e do trabalho dessa gente que parece repetir a travessia do deserto.
Depois veio a esperança verde da Amazônia, o eldorado da borracha, a fuga para a terra das águas. Novas travessias: floresta, igarapés, rios imensos, nunca vistos, pestilência, maleitas, escravidão no meio do seringal. Coube novamente atravessar com o pouco que se tinha as solidões, participar da aventura de construir o moderno no meio do nada, perder a vida para a sezão, para os bichos do mato, para aqueles que os viam como intrusos entrarem em suas terras. Tudo para a riqueza do comerciante da capital.
Travessias com as drogas do sertão, com os metais preciosos achados num golpe de sorte. E assim foram pagar de arigós nas matas virgens desse país imenso. Mais tarde voltariam com as promessas da ditadura, agrovilas, Transamazônica, projetos de colonização e assentamento. Novas travessias, conflitos pela terra, mortes, pistoleiros, trabalho análogo a escravo, acampamentos precários, caindo no conto do gato. As grandes obras de engenharia, as barragens levando as cidades e as memórias de outros tantos, novas fugas.
O Sul maravilha, as grandes cidades, a industrialização, levou milhões a atravessar o país. O café no Paraná, as frentes de expansão no Centro-Oeste, não há uma história que não inclua um nordestino a atravessar léguas, a pé, de barco, de pau-de-arara, de trem, em busca de dias melhores. Aprenderam a viver no trânsito, na transição, no ir e vir, sem fim. Enriqueceram empresários de transporte, fizeram as fortunas dos patrões, serviram patroas, criaram filhos que nunca pariram, ergueram os grandes edifícios, cavaram os grandes tuneis, ergueram pontes, construíram uma cidade monumento no meio do sertão.
E aí deixaram suas vidas, seus suores, seus sofrimentos, suas saudades, suas solidões, seus amores, suas dores. Aí deixaram suas esperanças, construíram seus barracos, suas vilas, suas feiras, seus forrós, suas associações. Aí ergueram sindicatos, partidos, aí foram mortos pela repressão, pela polícia.
Se tornou uma tradição, uma iniciação necessária para qualquer jovem nordestino, das camadas populares, a prova de fogo, a entrada na vida adulta, o tornar-se caboclo macho: deixar a barra da saia da mãe e ganhar o mundo.
Encher os ônibus da Viação Itapemirim, levando a carne assada de frango na farinha e a garrafa de cachaça para comer e beber nos dois dias de travessia. Dias de travessura com as meninas também migrantes, dias de encontros, namoros. Dias de tristes partidas anunciadas no programa de rádio, na oferta de canções para quem ficava. Na rodoviária, na hora da partida, choros de mães, filhos, filhas, esposas, lenços a acenar e mais uma travessia começava, cheia de espera e esperança.
Vivemos numa época em que o capitalismo neoliberal está tornando a todos nômades. Estamos fazendo a travessia para um mundo marcado pela incerteza, insegurança, pela precarização das existências. Tudo que parecia sólido e definitivo se desmancha no ar: empregos, direitos, aposentadorias, moradias, nações. Os nordestinos pobres parecem ser, de longe, os mais preparados a viver nesse mundo de travessias e atravessamentos sem fim.
Vamos entrar em um novo ano, onde temos que fazer uma importante travessia, aquela que nos levará para longe do fascismo, última grande ilusão de que é possível construir algo como uma ordem social nos marcos desse capitalismo financeiro destrutivo de toda possibilidade de uma vida que não seja vivida como busca, procura, por uma terra prometida, que os ricos curiosamente parecem começar a procurar fora da terra.
Em um final de ano que a coqueluche é um filme que manda agente ter cuidado ao olhar para cima, devemos abrir os olhos para o que se passa em nosso mundo, aqui a nossa volta, onde as elites planetárias parecem não ver que a continuarmos nessa rota, não serão apenas os nordestinos, os africanos, os asiáticos, as mulheres, todas as minorias que continuarão suas travessias, mas nós enquanto espécie e civilização estaremos definitivamente condenados a transitar para uma situação distópica e catastrófica.
Aprendamos com os nordestinos pobres as artes das travessias, mas também as artes das travessuras. Que 2022 seja um ano de atravessamentos, de travessias e de travessuras para todos nós! Precisamos sair dessa, atravessar essa coisa que se atravessou no caminho do país! Nordestinos, apostos para fazer a transição!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.