Algumas das reações a meu último artigo só vieram dar razão ao que nele se dizia. Parte das elites e da classe média brasileira é subjetivamente fascista e, por isso, potencialmente genocida. Nem todos são vistos como humanos, como os chamados bandidos, e há vidas que podem ser ceifadas, ao arrepio da lei, por ser de menor valor.
Na cabeça dessas pessoas há uma pena de morte informal e ilegal que pode ser aplicada pelos agentes de repressão do Estado e qualquer morte praticada por eles é, a priori, justificada, desde que as vítimas morem em favelas, sejam pretas e pobres. Qualquer versão dada pela Polícia é verdade e não merece nenhuma investigação. Bom jornalismo é o praticado pelos programas policiais fascistóides que assumem a narrativa das forças de repressão do Estado e humilham, vilipendiam e desrespeitam os direitos humanos de todo o acusado, que não merece o direito à dúvida e muito menos à presunção de inocência.
A operação no Jacarezinho foi, de saída, uma operação ilegal, pois estava proibida por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Se as forças repressivas do Estado agem ao arrepio da lei passam a ser milícias ou forças paramilitares. Podemos questionar as leis, a Constituição e até a forma de organização do Estado, mas, se não defendermos que as leis devem valer para todos, a começar para os agentes que a representam, estamos defendendo a lei do mais forte, caminho para a barbárie e não para a civilização.
O pretexto da operação é inaceitável, não se utiliza um aparato bélico como aquele para se fazer uma investigação sobre aliciamento de menores pelo tráfico, algo mais do que já sabido e constatado. Investigação se faz com o uso de inteligência e não se expondo os próprios policiais a serem mortos, como foi o caso de um deles.
A melhor forma do Estado evitar o aliciamento dos menores é se fazer presente na vida deles, com programas sociais, com moradia, políticas de educação, saúde, habitação, políticas de emprego e renda. Mas temos um Estado que se omite o tempo todo, que não se faz presente na vida das crianças pobres, pretas, das favelas e que só comparece para matá-las quando se transformaram em bandidos.
Ninguém nasce bandido, a não ser na cabeça eugenista de parte de nossas “pessoas de bem”, que crê que a criminalidade é hereditária e apanágio de descendentes de alguns grupos e classes sociais em específico.
Dizer que houve um confronto entre grupos armados é duvidar de nossa inteligência. Se havia um grupo fortemente armado do outro lado, por que só morreu um policial enquanto do lado dos “bandidos” morreram vinte e oito pessoas? Vários observadores que foram ao local encontraram claros sinais de execuções sumárias. Testemunhas narraram que várias pessoas, após se entregarem, foram fuziladas.
Mas para os fascistas das redes sociais se são bandidos têm mesmo é que morrer, acham que a chacina, o extermínio, vai resolver o problema da segurança e da criminalidade, que a política fracassada de combate às drogas vai alcançar sucesso desrespeitando um direito básico, que não pode ser infringido nem numa guerra, que é o direito de ser poupada a vida de quem se rende.
Na forma distorcida dessa gente pensar, se o bandido não respeita a nossa vida, nem nossos direitos, por que vamos respeitar os deles? Vamos respeitar justamente para não sermos também bandidos e não nos equipararmos a eles.
Um Estado que se torna bandido a pretexto de exterminar bandidos é o pior dos mundos. Agentes do Estado devem dar exemplo de respeito a lei e aos direitos, e não ao contrário, se sentirem liberados para passarem por cima dela e agirem como bem entendem, pois agindo assim eles desmoralizam o próprio Estado de direito.
Mais uma vez ficou claro, para quem foi ao local da chacina, que houve adulteração propositada da cena da matança. Transportar corpos completamente destroçados por balas de grosso calibre para hospitais, a pretexto de salvar-lhes a vida, só tem o intento de dificultar as investigações e mascarar as atrocidades ali cometidas. O pior é a suspeita que paira de que a operação ilegal e desastrada, de que a matança foi realizada com o intuito de que milicianos se apropriem do território dominado pelo tráfico.
Os fascistas estão nas ruas há dois finais de semana. Assim como fazia Mussolini, na sua Itália fascista, nosso Duce tem desfilado à frente de motociclistas, para mobilizar os seus seguidores, dar demonstrações de força, no momento em que sua popularidade despenca e que os crimes de seu governo vão ficando cada vez mais explicitados.
Da mesma forma que diante da chacina do Jacarezinho muitos esboçam um sorriso de satisfação e vão as redes mostrar sua solidariedade com os matadores, com a certeza de que qualquer morador de favela é traficante e, por isso, merece ser executado sumariamente, sem direito a uma investigação, à defesa, a um julgamento e uma pena justos, dando aos agentes do Estado o poder de aplicar uma pena de morte não prevista em nosso aparato legal, com a desculpa cínica da legítima defesa, diante de pessoas já desarmadas e rendidas, vai-se as ruas em animados desfiles de veículos (que a essa altura poucos pobres possuem) e em comícios, com presença até do general que de repente se torna muito corajoso, possivelmente para debochar das investigações, para demonstrar mais uma vez o desprezo pelas instituições e pela vida de mais de quatrocentas e cinquenta mil pessoas.
Mas para pessoas subjetivamente fascistas, se vinte oito vidas humanas não importam, não merecem ser defendidas, mesmo que tenham se tornado erradas ou bandidas, por que se deveria defender a vida de quatrocentos e cinquenta mil?
Quem concorda e comemora a morte de um ser humano, esteja de que lado esteja, quem não defende radicalmente, em nome da civilização, o direito daqueles que tiraram a vida de outros, merece o julgamento e a punição prevista em lei. Quem defende pena de morte clandestina pouco se importará que um genocida, que partilha desses valores, venha às ruas tripudiar sobre os cadáveres de milhares de pessoas.
O fascismo mata nas ruas e depois faz delas passarela para o deboche e o escárnio, como fizeram com a morte de Marielle. Hoje Marielle se tornou milhares, e o deboche, o riso de canto de boca continua a se ouvir.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.