Como afirmou o presidente Luís Inácio Lula da Silva, em discurso na reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a indiferença dos governantes do mundo diante da carnificina genocida que o governo de Israel está promovendo na Faixa de Gaza é chocante. O mundo assiste, sem sair da sua rotina, ao fuzilamento de centenas de civis desarmados e famintos numa caótica distribuição de alimentos, o massacre cotidiano de mulheres e crianças, a invasão e bombardeio de hospitais, o assassinato de agentes da Organização das Nações Unidas, que tentam prestar algum socorro aquela gente. Crianças que viram seus pais serem mortos vagam pelos escombros das ruas, totalmente desorientadas; mutiladas imploram por morrer para não serem submetidas a cirurgias sem anestesia, as feridas que levam na alma sangram tanto quanto as que levam nas carnes. Os portais de notícias ocidentais adotam como providência, pretensamente ética, não veicular as terríveis imagens que nos chegam através das redes sociais.
Diante do assassinato de mais de setenta jornalistas, os meios de comunicação seguem tentando manter a narrativa insustentável de que o que acontece em Gaza é uma guerra entre Israel e as tropas do Hamas, que curiosamente são as que menos aparecem mortas no conflito. Se o Hamas deve ser responsabilizado por ter desencadeado e dado pretexto para o extermínio de seu povo, a tentativa de passar pano para a empresa de limpeza étnica perpetrada pelo governo sionista, é um crime que vai ficar manchando as mãos e as consciências dos jornalistas ocidentais.
A manchete ignominiosa do Jornal O Globo transformando o assassinato a sangue frio de pessoas famintas num mero tumulto que haveria causado mortes, tornando as vítimas as responsáveis por sua própria morte é um fato que deixa patente a falência ética da grande imprensa no país. Ao atribuírem ao Hamas a versão de que teria sido mais um crime dantesco cometido por Israel, veículos de imprensa como Folha de São Paulo, UOL, O Estado de São Paulo, deixam explicito que fazem uma cobertura completamente enviesada e desumana do genocídio.
Como formam, mais uma vez, um verdadeiro partido de oposição ao governo Lula, a cuja cobertura também falta qualquer princípio ético ou mesmo apreço ao jornalismo, não podem admitir que foi nosso presidente um dos únicos a denunciar, desde o início, a desproporcional resposta de Israel, sua contumaz desobediência as leis internacionais, seu desprezo por qualquer regra do direito internacional.
Agem em relação à Gaza, como agiram em relação ao crescimento da economia brasileira, à medida que não se cumpriu os vaticínios urubulinos de seus especialistas em economia. O crescimento do PIB bem acima das expectativas da entidade mercado, em nome do qual esses órgãos de imprensa falam, de 2,9% em 2023, ao invés de ser tratado descentemente como matéria jornalística, deu origem a uma saraivada de adversativas nas manchetes, onde o desejo de que as coisas deem errado para o governo, ou seja, para a população do país, mal consegue se disfarçar. Todas as manchetes, como se fossem orquestradas, noticiavam o aumento do PIB seguido de um “mas”, que dava início ao enunciado do desejo, da torcida contra o país, para que eles cheguem a ter razão, já que é uma imprensa que, não só não noticia os fatos, como é frequentemente desmentida por eles. Apegada a um receituário neoliberal, superado até nos países centrais, vimos a curiosa pesquisa de O Globo entre economistas para entender como é que o fato do governo Lula ter voltado a dar aumento real no salário-mínimo não elevou a inflação, como preconiza o receituário neoliberal, ao contrário veio acompanhado da sua queda. Perplexos porque seu receituário não se materializa na realidade, tentam sempre convencer a todos que no futuro isso ocorrerá.
Temos o curioso fenômeno da imprensa-cartomante, da imprensa-vidente, que noticia projeções de futuro, quase sempre catastróficas, para não ter que encarar a realidade presente. Assim como o desastroso ministro da economia do governo anterior, que recebia salamaleques desses mesmo órgãos de imprensa, o vidente Paulo Guedes, que para administrar a realidade foi um desastre (e que está escondidinho na moita para ver se não se lembram que ele participou de uma reunião em que se tramou um golpe de Estado e não denunciou a trama), não acertou em suas previsões de desastre, os jornalões, revistas e portais tem que fazer ginásticas narrativas e mancheteiras para não admitirem que se tratava só de torcida e desejo contra o país, as suas “abalizadas” análises.
A miséria ética que presenciamos toda noite, com o Jornal Nacional fazendo malabarismos para manter sua posição favorável a Israel, espancando os fatos, distorcendo na narrativa o que se vê nas imagens do massacre, fornecidas pelas próprias forças israelenses em seu fanatismo genocida, é deplorável. As declarações desumanas da alta cúpula do governo Benjamin Netanyahu, como aquela dada pelo ministro da defesa de que a matança na fila do pão tinha sido uma ação excelente dos soldados israelenses, são expostas sem nenhuma abordagem crítica. O constante desrespeito e assédio cometidos pela diplomacia do governo de extrema-direita de Israel contra o Brasil, e sua administração, sendo endossados pelos nossos órgãos de imprensa, demonstra que o estágio neoliberal do capitalismo causou, além de altas taxas de miséria econômica, com a brutal concentração da riqueza e da renda, uma profunda miséria ética, subjetiva, dado o processo de individualização e de perda de empatia, que a lógica da competição, da meritocracia, da identidade e da singularidade levou a se acentuar.
Só uma humanidade sem empatia pode permanecer insensível ao que se passa em Gaza e em tantos outros lugares do mundo como na Ucrânia, Haiti, Sudão, Níger, etc. Só meios de comunicação e jornalistas miseráveis eticamente, insensíveis podem considerar que a vingança coletiva, que o extermínio de milhares de pessoas (o Holocausto não começou com a morte de milhões, começou com a morte de alguns, de dezenas e foi o silêncio cúmplice dos governos do mundo que fez a matança atingir as proporções que atingiu) pode se justificar de algum modo.
A posição do governo dos Estados Unidos acerca da matança em Gaza, a qual nossa imprensa costuma aderir sem nenhum senso crítico, é eticamente vergonhosa, e politicamente desastrosa, podendo decretar a derrota de Biden nas próximas eleições. Os murmúrios em privado contra o governo sionista e as promessas de cessar-fogo que o parceiro ignora solenemente, no mesmo instante em que desembarca armas para o aliado e promete lançamento aéreo de alimentos para os palestinos é o testemunho dessa fragilidade ética que preside, hoje, todas as relações humanas, inclusive as relações internacionais.
O neoliberalismo exacerbou o individualismo, o egoísmo, o narcisismo, o desejo de distinção e singularidade. A contracultura, dos anos sessenta do século passado, presidida pelos desejos libertários de transgressão e quebra dos padrões mais tradicionais, pode ser lida como um dos primeiros vagidos dessa ordem subjetiva em que estamos mergulhados, em que ganhamos muito, quanto as liberdades individuais, mas às custas de uma sociedade pouco preocupada com o coletivo, pouco afeita a causas sociais mais amplas.
O narcisismo das pequenas diferenças, para usar uma expressão freudiana, foi importante para que dadas conquistas no campo dos direitos individuais e dos direitos humanos ocorressem, mas, por outro lado, tem dado margem a emergência de uma ordem social insolidária, onde o nível de empatia em relação ao outro tem diminuído drasticamente. O neoliberalismo explica o jornalismo em que os interesses imediatos do empresário são assumidos pelos jornalistas como se fossem seus, em que a permanência em seus postos de trabalho e a ascensão individual estão acima dos interesses coletivos e da própria empatia com o humano. Se dar bem passou a ser a máxima, independentemente do que se tenha de fazer de lesivo ao coletivo, aos outros, para que isso seja auferido.
Para quem, como eu, fez a crítica ao humanismo, naquilo que ele teve de desumano, de excludente, pois o humanismo ocidental excluía da imagem do humano dois terços dos seres humanos, se vê apavorado tendo que retomar os discursos humanista e humanitário mais básicos, diante do horror do crescimento dos fascismos em todo mundo, diante da face horrenda de uma humanidade incapaz de se reconhecer, minimamente, no rosto do outro, do diferente. Sempre fico a imaginar o que move um jovem de dezoito anos a apertar o gatilho e disparar contra uma criança, um velho, uma mulher grávida, um médico salvando vidas num hospital? Que estágio de desumanização o ódio representa, a ponto de se invadir casas e queimar famílias inteiras, como fizeram os militantes do Hamas e como fazem hoje os soldados israelenses. Diante desse quadro, consigo entender e ser solidário muito mais com o jovem soldado que se imolou diante da Embaixada de Israel, tocando fogo em si, gritando pela libertação da Palestina, do que em relação ao gesto de um soldado que atira em uma multidão faminta e, menos ainda, do que em relação a um jornalista, um editor que, no conforto de seu ar-condicionado, produz uma manchete que diz: “tumulto no norte da Faixa de Gaza em distribuição de alimentos termina com mais de cem mortos”. Diante dessa miséria moral e ética o desconsolo e descredito é imenso e só resta, ainda, a indignação diante da indignidade, mas (viva as adversativas! Recurso retórico dos adversários e adversos) é o que temos para o momento como “jornalismo”.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.